domingo, 28 de dezembro de 2008

Poema

Ontem caminhei por esta cidade
e a beleza das suas ruas e corpos
era a beleza insone e promíscua.
Impossível dizer quando isso mudou
pois nada mudou: apenas percebo
- durante um ou outro passeio -
que me agarro à cidade derruída
como quem se agarra a uma sereia
que seduz e afoga apenas os infantes.

Talvez, amanhã, as noites convulsas
retornem como uma segunda juventude
embora eu ainda viva uma idade
intermediária. Algo como olhar para trás
e saber que a memória já não é
iluminada apenas por clarões de infância.

Estranho também perceber como a beleza
agora machuca - talvez porque
reverbere como uma impossibilidade consumada
ou um fantasma de rosto encarnado:
há pouco ânimo para escrever versos
o vento silencia doces fugas
e a garota bonita dobra a esquina antes
que o seu rosto se fixe em minhas retinas.

E há o corpo: tão impaciente, tão cansado, tão
incapaz de abandonar o desejo.
Há noites em que evoco o amor que se torna
agonia após ter cobrado um preço extremo
e há noites em que acredito
que amanhã pode vir a segunda juventude:
uma nova noite estrelada e a segunda
possibilidade de escrever versos bonitos
de entregar-se a fugas e de ofertar ao corpo
tudo aquilo que não o saciará.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

trecho

Entrou no ônibus, que estava completamente vazio. Ajeitou-se em uma poltrona e passou a olhar pela janela. Da carcaça metálica do ônibus saía uma fumaça quente e espessa, que aumentava a distância entre Oklahoma e as pessoas lá fora. No momento seguinte, som de vozes e passos: passageiros entravam no ônibus e ajeitavam-se em seus acentos. Aroma de café preparado durante a noite e requentado pela manhã, também cheiro de suor, de homens que não trocavam as suas roupas há vários dias. Todo o ônibus estremeceu e, logo em seguida, pôs-se em movimento. Oklahoma ainda olhava pela janela: contemplava a Avenida das Palmeiras, o ribeirão de águas castanhas, os escassos vultos que entravam e saíam dos bares. No alto de todos os postes da Avenida das Palmeiras, lâmpadas ainda acesas emanavam um brilho amarelo que, ao misturar-se com o nevoento amanhecer, era um borrão que nada iluminava. Debaixo das árvores frondosas, as sombras eram mais espessas e haviam adquirido um matiz esverdeado. Oklahoma pensou no romance que escrevera, em Carlos Shangai, em Pizarro, nos anos idos, e então percebeu que nunca se despedira da terra santa em que vivera as aventuras da juventude e por onde haviam caminhado as musas que haveria de esquecer. Nô mais, Canção, nô mais, Oklahoma evocou o verso de Camões, disse para si mesmo que aquilo que existira antes não existia mais (e havia deixado de existir sem qualquer alarme, sem qualquer preparação), e sonolento ajeitou-se na poltrona, com a certeza de que envelhecer era apenas isso: perceber a inutilidade e a precariedade dos deuses de outrora. No sonho que se sucedeu ao fechar de olhos, Oklahoma vislumbrou um Olimpo em queda. Caídos sobre as escadarias dos santuários em ruínas, corpos de divindades antes fulgurantes, vigorosas, todas traídas por um pueril promessa de imortalidade, e Oklahoma, enquanto caminhava pela cidade destruída, perguntava a si próprio como aceitar, pacificamente, os deuses da morte e da velhice.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Poema

Há dias que se prendem à memória
como se fossem o nome de um morto.

Lembro-me de uma tarde chuvosa,
da juventude, da luz em queda,
dos tediosos minutos, da praça
e da catedral tão vazias ao anoitecer.

Lembro-me de caminhos brumosos
e de como havia placidez
nas poças d'água espelhando o néon
nas pétalas caídas sobre a terra
no murmurejar da chuva
sobre a cidade esfumada.

Lembro-me também do reencontro
com uma antiga colega, uma rapariga
cuja beleza nunca atingiu o esplendor
e que já naqueles dias começava a fenecer
enquanto em mim, a tristeza,
ia além da vontade de chorar
e muito tímida revolvia o desejo
de nunca ter nascido.

E tanto naquele dia como hoje
permanecem em erro
o espírito, o coração,
o amor colhido e ofertado.

Foi cantado: os anos são de mudanças
mas também deve ser cantado
que algo permanece em inércia.
Pois, como antes, o anoitecer chuvoso
e nevoento o horizonte.
Como antes, incendeia-se
a alegria que haverá de regressar.
Como antes, algo se inquieta, algo
que não existe e que nunca
poderá existir. Algo como nostalgia
de uma luz nunca vista
e que permanece, estiolada,
dentro do espírito ignorante.