segunda-feira, 25 de maio de 2009

Conto

BLOW UP

Pedro sofreu o acidente que o deixou coxo em dezembro, e a sua esposa, se me recordo bem, teve machucados ainda mais horríveis. Portanto o natal foi pouco comemorado: após uma ceia breve e saudações à meia-noite, todos foram dormir. Eu estava sem sono e pensei em pegar o carro e dar uma volta pela cidade, talvez ir até o Radio City.

Na tarde seguinte liguei para um amigo e combinamos de nos encontrar no salão de bilhar. Assim que iniciamos a disputa, começou a chover. Junto ao balcão, o homem que administrava o lugar jogava um estranho jogo de cartas com outro sujeito. Às vezes esse outro sujeito gritava. Perto deles, comendo de um prato que recendia a gordura antiga, estava sentada uma adolescente – rosto claro ungido pelo suor e pela gordura que se emanava da chapa de grelhar hambúrgueres, os seios salientes (talvez engordurados também) sob o fino tecido da blusa, cabelos à altura do pescoço. À medida que a chuva ficava mais forte, a madeira dos tacos tornava-se pegajosa e não conseguimos nos divertir. Antes do crepúsculo eu já tinha voltado para casa e, quando a noite começou a chegar e parou de chover, veio, dos fundos, um cheiro de bananeiras molhadas.

Nos dias que se seguiram, eu e Cartago voltamos a perambular pela cidade velha. As lojas – após a alegria natalina – estavam todas fechadas. A prefeitura ainda não tinha dado início aos trabalhos de limpeza, e as ruas encontravam-se atulhadas de papel picado e jornais de propaganda. Chovia forte quase todas as tardes, mas depois vinha o sol, e ascendia um mormaço doente e preguiçoso. A impressão que se tinha era de que a água estava estagnada há não sei quantas semanas e por isso apodrecera.

Na última tarde do ano também vagamos pelo centro: primeiro uma caminhada pelas ruas quietas e ensolaradas (aqui e ali explodiam bombas, e ao mormaço fundia-se o cheiro de pólvora), depois algumas partidas no salão de bilhar e por fim uma visita ao shopping, que tinha todas as lojas fechadas e, na praça de alimentação, as cadeiras empilhadas. Era a última sessão de cinema do ano e havia poucas pessoas na sala de exibição. Sentámo-nos e, enquanto esperávamos o filme, vimos chegar um grupo formado por uma mulher e duas raparigas de quinze ou dezesseis anos. As meninas não pareciam ser irmãs ou primas – o tom da pele, a cor dos cabelos, os ossos do rosto, as sombras ao redor dos olhos, os gestos: nada indicava parentesco e o único aspecto que tinham em comum era uma magreza desengonçada (era como se o silêncio e a melancolia – uma tristeza apenas adivinhada, apenas imaginada – tornassem o ar mais espesso ou rarefeito; como se as duas meninas, ou melhor, como se os seus dois corpos magros ainda não estivessem acostumados a variações na densidade das horas).

Quando saímos do cinema e ganhamos a rua, o crepúsculo ia pela metade. Tinha sido uma tarde sem chuvas e um sopro quente varria os papéis e as copas das árvores. Bombas ainda explodiam aqui e ali (agora com mais frequência). Do alto dos postes descia uma luz que, misturada à poeira do entardecer, assumia um tom alaranjando, enquanto o céu poente oscilava entre matizes pálidos e de um azul muito escuro. Por quase uma quadra, a mulher e as meninas caminharam diante de nós, e durante todo o tempo tivemos a impressão (agora também em relação à mulher) de magreza destroçada, aniquilada. Era como olhar para o retrato de alguém – um retrato tirado durante um momento de introspecção – e adivinhar uma morte triste, talvez por suicídio.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poema

Não falávamos sobre o amor: falávamos
sobre o abandono, sobre apenas ter
a companhia do próprio coração –
tema surgido ao acaso, talvez
porque ontem o límpido céu de maio
cobriu-se de cinzas, e o vento frio
era açoite sobre a carne, açoite
além da carne, açoite talvez
sobre o espírito, sobre a cicatriz
de sangue, de mágoa, de solidão.

"Dói estar apenas na companhia
do próprio corpo, do próprio cansaço;
mas também dói buscar a comunhão
com o que está fora: seja uma tarde
de pura luz, seja moldar um outro
corpo ao nosso corpo." – afirmou Elisa,
e os olhos eram dois peixes negros, dois
peixes que sentem as sombras caírem
sobre as águas no limiar do inverno.

"Sim, tudo dói" – falei após o silêncio.
"Dói o amor, o desamor, dói ser carne,
dói o que temos e o que longe está
de nossas mãos nuas, de nossos corpos
talhados pelos ventos e colhidos
pela morte; como se apenas fôssemos
rubra luz entre duas transparências –
mas talvez para o fácil não nascemos,
talvez tenhamos nascido somente
para a alegria mais difícil, para
o gozo na escassez, para o que não
podemos ver e com fúria buscamos" –
respondi e me lembrei de outra tarde;
uma tarde após o amor, e eu na praça,
cansado de mim, à sombra das árvores,
bebia garapa, olhava os homens
e estes eram apenas um borrão,
apenas sombras cambiantes, vultos
batidos pela luz outonal –
gás que não se diluiu quando a chuva
veio; uma chuva breve e fina,
cujos pingos, trespassados pela luz,
poucas cabeças ungiram, lembrando
esparsa e clara poeira de estrelas.

E talvez o amor seja apenas isso –
pensei tanto naquela tarde como
diante da miúda cujos olhos
eram tristonhos como peixes náufragos:
a alegria do amor é fugitiva
por talvez se encontrar além dos corpos
que se entrelaçam, além da ternura
com que criam a chama que talvez
seja apenas o delírio de ser
iguais aos deuses que nunca existiram,
iguais aos eleitos que ungidos foram
por mentirosa poeira de estrelas
(pois até para o delírio é preciso
sorte: algo como se deparar
com um crepúsculo de sol e chuva
e ter o corpo envolvido por tanta
luz, tanta pureza, e então gozar
o breve milagre desse minuto
feito de brasas que, ao se acenderem,
nessa hora percebem que são finitas).

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Poema

IDENTIDADE

Lua alta e céu estrelado;
após o frio recebo o calor
como se voltasse de um país estrangeiro.
Deitado na rede após o jantar
ouço os ventos sobre as samambaias
e as vozes que ao longe ecoam
falam a língua que adoro ouvir.
O fundo do quintal sempre foi o mirante
de onde eu podia ver toda a cidade.
Aqui, malgrado meus abismos e raivas,
não sou estrangeiro
e até o luzir dos vagalumes
tem um cheiro de terra queimada:
noites que não existem
em nenhum outro lugar do mundo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Poema

MARIANA

Se existe candura nas manhãs
esta candura cheira a flores queimadas
pelo orvalho, cheira a terra umedecida
pelo que foi o luar e que agora
é a palidez que se esbate, é o naufrágio
- em esbraseados tons de vermelho -
da última estrela da madrugada.

Se existe candura nas manhãs
é porque o mais negro silêncio
é agora um canto de pássaros,
é porque da terra ergue-se uma voz
apenas pressentida durante a noite
e que agora é cristalina, é fecunda
como um rio de águas claras
murmurejando nas sombras.

Se existe candura nas manhãs
é porque Mariana abre os olhos,
é porque o seu rosto se acende,
é porque o sangue volta a convulsionar
e lamenta o sonho que deixou de ser sonhado
pois cada manhã é continuação e recomeço,
cada manhã é uma dádiva ao corpo
e Mariana – espírito ainda entorpecido
mas carne fremente – sai
para uma corrida pelo bosque:
o ar frio magoa-lhe a pele
e o rubor surgido nas maçãs do rosto
é o rubor da vida que perdura,
é o rubor das açucenas
que resistem ao orvalho e ao sol.
Assim Mariana corre pelo bosque:
nos olhos, a tristeza pelo sonho que deixou de ser
é um começo de alegria agora,
é um desamparo que se muda em desejo,
é um desejo que se muda em força,
é uma força que antes de se esgotar
adensa as manhãs e coloca um cheiro de sangue
- fecundo e quente sangue feminino -
em cada tremor de luz, em cada árvore,
em cada canto de pássaro,
em cada continuação e recomeço.