sábado, 23 de janeiro de 2010

Poema

Em cidade estranha e mesquinha, ouço
duas melodias familiares: a primeira
é tangida por flautas andinas
e logo em seguida – enquanto na tarde
ainda se desfaz a canção doce e citadina –
reverbera o sino da catedral:
cada badalada soma-se ao eco da anterior
e a esse ecoar somam-se os olhos
que as fronteiras da cidade não venceram,
olhos que nunca foram além
do primeiro e materno exílio.

"Aqui não nasci, aqui não morrerei" – penso
mas o sentimento não é o de alívio
pois se aqui não nasci e aqui não morrerei
a terra que me tem como raiz
também não é altiva: também é uma cidade
estranha e mesquinha, uma cidade
com fronteiras como as dessa:
colunas de poeira colunas de fogo
paisagens de terra vermelha
mortos que cheiram a pólvora e a asfalto
sábados que cheiram a bocas carmesins
domingos que cheiram a cristo e a tédio
anos em estado de inércia, e a velhice
enquanto a perda de algo ínfimo –
algo como olhar para o céu de todas as noites
e não encontrar, no manto cravejado,
uma chama de secreto significado.

Então vem o sonho (e o sonho começa quando
ainda se possui o céu com todos os deuses)
com passados céus de maio e depois
com as árvores em queda e depois
com as esquinas em mudança e depois
com os corpos enquanto pedaço de luz
não retida, não preservada –
os corpos enquanto vida estiolada
a trespassar, a fugir do coração.

E, no entanto, é o desejo mais tolo que existe:
Não deixar a cidade primordial. Não
deixar este corpo estes olhos este rosto
com o qual desbravei a cidade.
Não perder o pulmão que respirou
as tardes secas como se estas fossem
as únicas tardes possíveis. Não
ter exilado de mim o coração
que ainda trago como quem carrega
uma chaga viva, levando-o
até além do crepúsculo – até a noite
atiçada por cheiros que são sementes
e o desejo (o qual cheira a terra e a carne)
é como relva oculta nas trevas:
Respira-se o orvalho. Respira-se os jasmins
que queimados pelo orvalho são chama branca
e doída. Respira-se o luar alto - o luar
envolto por um halo de amarela
sujeira e amarelas luzes citadinas: o luar
lento sobre os corpos cuja queda
é suspensa – um corpo de rapariga entre
o primeiro alvor e o amarelo sujo
caído do alto dos postes e do alto dos telhados
de uma cidade já esquecida.

domingo, 10 de janeiro de 2010

poema

HÁ MULHERES

Há mulheres que passam
e deixam pétalas sobre os caminhos
que trilhamos juntos.

São estas as mulheres que mais amo
e não vejo como seguir o meu destino
sem antes recolher e guardar
todas as pétalas que ficaram para trás.

Não é um trabalho fácil este;
antes é preciso aprender o desapego,
aprender a não mais querer possuir
aquilo que já nos não pertence.
Não há saudade que não seja fugidia,
não há navio que desapareça no horizonte
e não deixe um rastro de fumaça
que invariavelmente se dilui.

Mas ainda assim amo todas as pétalas
que recolho sobre os caminhos trilhados.
Talvez rosas dos jardins de Adônis
amo-as pois tiveram uma beleza fulgurante
e hoje são desejo sorvido pelo sol,
amo-as pois ao recolhê-las
despeço-me de olhos que já não existem.

"Vê esta rosa de pétalas vermelhas,
esta rosa de pétalas vermelhas é a tua infância.
Esta outra pétala, repara,
é o teu sorriso aos vinte anos.
Tanta coisa eu levo comigo, tanta coisa.
Mais do que teus segredos, levo teus sonhos
e também o que esqueceste de sonhar,
esta rosa de alma pálida,
este vermelho que não conheceu a primavera."

sábado, 2 de janeiro de 2010

O sol, após as chuvas noturnas,
lança um bafo úmido sobre as ruas:
o que se respira, machuca
e, no entanto, é como se a dor
não fosse humana, como se a dor
aqui estivesse antes das chuvas
noturnas, e antes do arrebol,
e antes dos crepúsculos de fogo
e antes da idéia de que existe
algo belo, algo bom, algo incandescente;
antes, enfim, da idéia de que esse lume
foi deixado em cada coração
e que em cada coração permanece:
chama sem nome e sem fim.

A aurora segue, e é como se fosse a aurora
do primeiro dia – brisa seca
sopra por entre os galhos, galos cantam,
e por um momento tudo o que se ouve
é a natureza crua e alheia:
tudo nasce, tudo morre e nada grita
mais alto do que o vento sobre as árvores.
Mas há homens aqui, e porque há homens aqui
o que se escuta vai além
do que nada significa. E o que se escuta
é aquela dor que não parece humana
mas que, todavia, tem voz humana
e imita anseios humanos: outro corpo,
luz mais duradoura, a certeza
de que algo existe: algo belo, algo bom,
enfim, algo incandescente – lume
que em cada coração permanece:
chama sem nome e sem fim.