domingo, 24 de junho de 2012

Poema Para Depois das Festas Juninas


Ainda perdura o sol no inverno:
brandos véus de luz a vibrar e a entoar
melodia que um claro silêncio margeia.
Ainda nas casas vizinhas um festival
de rumores alegres no domingo:
vozes de crianças que cantam parabéns,
o fraco farfalhar das folhas de bananeiras
e o tíbio, mas nunca opaco,
canto de pássaros ocultos.
Em cadência lenta, o dia evoca
as vésperas das férias.
Ainda ontem havia pipas no céu.
Ainda ontem uma mulher vendia morangos
na praça diante da capela;
os morangos eram vermelhos e túrgidos
e a mulher disse que os colhera
durante o amanhecer.
Ainda na última madrugada o drapejar
das bandeiras de festa junina
após todos irem dormir. 
Escutar este drapejar era 
escutar etéreo pranto enluarado;
como se o luar fosse alma que chorasse
entre a neblina e cada lágrima sua
houvesse se mudado numa destas bandeirinhas
que alvorecem úmidas de orvalho -
leve e breve estandarte de uma festa encerrada.

sábado, 23 de junho de 2012

Meu Nome É Meu Coração


Meu nome é meu coração.
Meu nome: não mais do que o vento
erguendo poeira no dia seco.

Vêm as manhãs em que não se consegue respirar.
Vem a garoa fina a gotejar dos beirais do telhado.
Vem um torvelinho de folhas mortas e terra vermelha.
Vem um miserável com a carne em chagas.
Vem um cão ferido após a chuva.
Vêm carcaças de animais na estrada quando volto para casa.
Vem a ruína de uma esquina que permanece.
Vem um clarim fúnebre a reverberar
o epitáfio do último homem a morrer
e tudo conclama o meu nome
porque o meu nome é o meu coração
e o meu coração é aqui morrer.

Vem a exaustão após o amor.
Vem a pele fria de abandono.
Vem corpos unidos como numa escultura de Rodin
mas que artesão nenhum sabe preservar
e cujo bronze é todos os dias roído e quebrado
pela brisa salgada de uma lágrima
fundida ao gozo e no coração trêmulo de silêncio
enrodilham-se verdade e mentira.
Vem uma palavra após a outra.
Vem uma palavra tantas vezes dita e se torna sombra
do que tantas vezes foi calado.

Meu nome é meu coração:
meu nome que quer se somar a outro nome,
meu coração que quer se somar a outro coração,
mas sempre é apenas o meu nome
e sempre é apenas o meu coração.

Vem a véspera de um canto de exaltação.
Vem uma casa erguida sobre o barro.
Vem a alegria de viver nesta casa.
Vem Cronos a devorar o filho e depois o filho do filho.
Vem uma tulipa vermelha que tento partilhar
como se partilhasse o meu coração
porque o meu nome é o meu coração
e o meu coração está trêmulo de silêncio.

Vem a véspera de um canto de despedida.
Vem uma mágoa que me diz o seu nome
e então pede esqueça o meu nome.
Vem um coração que não me pertencia
mas sujo com o meu sangue e diz o seu nome
e então pede nunca esqueça o meu nome
e eu apenas digo o meu nome é o meu coração
e o meu coração é não esquecer.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Cantiga Com Nomes de Flores


Pequenas pétalas roxas
e rosas nascidas próximas
aos tijolos empilhados
no fundo do quintal, não
longe dos escorpiões
e não longe do dulçor
dos abertos frutos do conde.

Eram pétalas miúdas
que ninguém sabia o nome.
São flores do brejo, disse
a mulher que eu amaria.
São flores do brejo e lá
onde nasci até adornam
alegres buquês de noivas.

Flores do brejo, pequenas
pétalas roxas e rosas
que murchas se evaporaram
entre os pomares da infância
e vãos altares do amor.
Flores da chuva, tapete
amarelo que o aguaceiro
estendeu sobre jardins -
sobre tais caminhos fui
ao deixar de ser menino.

Flores da chuva, crepúsculo
puído pela luz puída,
mortiça e suave sombra
curvada sobre a cidade.
Vinde cá, meu coração,
meu primeiro secretário,
faz canção a sua dor
e torna canção a dor
de esquálidas margaridas
que a chuva antes ceifou
de eu lhes cantar o esplendor.

Vinde cá, neves de antanho,
violetas que o temporal
levou. Vinde cá, estrelas
do céu frio. Vinde cá, flores
que aprendi a nomear
ao me tornar pietá
curvada sobre mãe triste:
lírios comprados na praça,
jasmins em vasos rachados,
rosas de uma casa escura
e lá fora a Babilônia
que Ítaca se transformou.

Vinde cá, meu coração, 
eterno rei coroado
por aquilo que não tem.
Vinde cá na penumbra
da aurora.Vinde cá e olha
este vaso de tulipas
que fantasma aqui deixou
para encarnar o vazio.

sábado, 2 de junho de 2012

Poemas Revisitados: Descobrindo Ítacas (em dezembro de 2010)



Tantas vezes coube o céu em meus olhos
que o próprio céu se mudou em raiz
saída da fundura mais doída.
Entrava nova estação e eu sabia
que luar a cingiria e qual fogaréu
traria as cinzas do dia futuro.
Era belo, mas também magoava
e deste encanto onde cantos eu
buscava vinha a idéia de que Ítaca
era minha e era o que me bastava.

Mas Ítaca não existe se não
existe casa para trás deixada.
Preciso é que a distância se desdobre
não em algo maior ou nunca visto
mas em algo que o sangue não conheça
como seu, ainda que imagens gêmeas
sejam dos muitos dias repetidos.
Eis o luar, o lusco fusco,
o luar embebido em luz, fogo leve,
não diverso da brandura de abril
embora lá outubro agonizasse.

Um mundo multiplicado em espelhos
é imenso ou é repetição?
Longe, encontrei beleza daqui
diferente, mas o que me aturdiu
é que o pólen de todo o coração
é soprado por um único deus
ou é vestígio de única ruína.
Longe, outras ítacas encontrei
e quanto mais eu as tornava minhas
mais a casa deixada para trás
era dor que ia do branco ao vermelho.

sábado, 19 de maio de 2012

Cantiga Enamorada


O que quero, enamorado, 
é o mais doce dulçor,
é este beijo que lembra
maçãs de amor, namorada. 
Me dá este beijo e vem
morar em minha tristeza
que em teu riso enamorado 
o meu pesar adormece
tão leve e primaveril.
Sorve o dia, namorada,
este vinho tão doído,
esta rosa devolvida
por terra então exaurida.

Sei que o sol, enamorado, 
tanto demorou  a vir
mas hoje o pranto e seus véus
são arco-íris, namorada. 
Cada dia que morreu
morreu pálida açucena
em jardim que namorado 
sozinho cuidou - relvado
onde o orvalho secou
sem evocar, namorada, 
os teus olhos de alegria
úmidos, estes teus olhos
do quais bebi toda lágrima.

domingo, 6 de maio de 2012

Sobre A Tristeza dos Domingos


Talvez o que mais doa no domingo
não seja o silêncio ou a antecipação
do trabalho que, inexorável, retornará.
Talvez o que mais doa
seja de que modo a luz - a límpida luz
que descortina as manhãs de domingo -
cai na treva. Uma melancolia
que avança feito maré; um oceano
de sombras crescentes que, em seu limiar,
ainda traz espumas que cheiram a sol
e toda a sorte de constelações
até que vem o soçobrar das águas.
Vem um silêncio que é o pungente
réquiem da luz. Cambiante, difuso funeral
do único deus que os olhos
um dia lograram ver.
Inevitável naufrágio de um alvorecer
em que o fogo foi infinito; em que a luz
foi um irisado perfume de cabelos
batidos pelo sol; em que o maduro canto 
da tarde foi de um fruto que, doce,
parecia que nunca apodreceria.
Principia o domingo, tão leve,
e principia um poema que só pode ser escrito
com palavras leves: tangerinas, tamarindos,
risos de crianças ora vindo das macieiras
e ora vindo do azul do céu, pipas a adejar,
uma súbita lembrança vinda da infância
que, destilada pelos anos,
torna-se este vinho tão raro de ser bebido:
este vinho com gosto de sol, este vinho
que abranda o sangue, este cálice breve
que sorvemos com um longo gole,
esta doce tontura que diz a vida é nada
apenas porque a vida é tudo,
este esplendor do qual um velho
pela primeira vez se viu apartado
sob a trêmula e sôfrega luz de Bizâncio:
Jovens aos beijos, saltos de salmão,
aves a cantar, música sensual
até que as sombras se fecham
e a calmaria de um negro oceano
dilui tudo o que era espuma e ardência.
Longe, tão longe, dobram os sinos
da fúnebre catedral. Entre sombras,
sombras se arrastam. A cidade é inerte,
tudo ganha uma qualidade de silêncio
(até os cães que ladram) e não há
coração humano que não seja 
pesaroso como o mármore;
não há coração humano que não se perceba 
cindido por súbitos abismos de sombras.