sábado, 1 de agosto de 2009

em tempos de gripe suína, outro poema antigo

ORÃO, SETENTA ANOS APÓS A PESTE

Saímos, eu e um amigo, para jogar bilhar.
No salão, um velho acompanha a disputa.
É um antigo morador do bairro
e o seus olhos opacos denunciam
uma vida que não excedeu as fronteiras.
Observando-nos, parecia indagar
a alma da própria cidade: também ela
é muda ante o esvair dos anos
e, imerso na profunda noite, o velho
balbucia palavras e monótonas
e repetidas sem cessar:

"Ah, talvez a vida tivesse mais sentido
se tudo fosse como outrora:
os pais barbeando-se com navalhas,
as crianças aprendendo latim
ventos cálidos trazendo o entardecer
e ocultando o demônio da peste e do exílio,
na hora do jantar o cheiro da carne grelhada
pairando sobre a cidade sem prédios,
longas filas diante dos cinemas
que exibiam filmes a branco e preto,
o vizinho que deixa a noite mais sentimental
ao ouvir Tommy Dorsey,
o dissimulado pudor das raparigas,
a promiscuidade dos jovens solteiros,
a murmurejante agonia dos amantes
trespassados por uma súbita abstinência,
o veloz carro de Rieux, o médico,
indo consultar os doentes que morriam
em todos os bairros da cidade."

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