Quarteirões inteiros de casas derruídas,
o vento frio e o céu encrespado de cinza –
ainda que outono seja hora cristalina
existe a antecipação do inverno. É o que basta
para meninas de cachecóis ganharem as ruas
e atrás delas um rastro púrpura e azul.
Ainda as tangerinas, ainda as noites estreladas.
Sei que, ao fim das tardes, o vento gelado
fará soçobrar este céu grisalho. Sei que a luz
será como um hálito branco que arderá
e o branco passará ao dourado e o dourado
ao vermelho e por fim à noite quieta.
Sei de tudo isso porque aqui estive quando
tudo isso aconteceu pela primeira vez: a descoberta
do instante ora cristalino, ora sombrio, e as flores
nas feiras e as meninas com cachecóis
como águas vivas sulcando a face das águas,
como pétalas primaveris esquecidas pela chuva.
Estar vadio é estar como um cão. Estar vadio
é não ter casa. Estar vadio é pular os muros,
acreditar que o vinho quente acabará com a febre,
por isso estar bêbado e ao abrir os olhos
sentir o sol como uma cicatriz de fogo
e saber-se leproso e solitário ao luar.
Estar vadio é algo que um homem abandona
enquanto caem os prédios, enquanto tesouros
vão ao lixo, enquanto as meninas perdem
a brancura de neve intocada e o rubor
de incendiarem pela primeira vez.
Estar vadio é algo que não finda com o vinho
mas com o fim da febre. Os dias são iguais
pois igual é tudo o que se perde: jogos
de dados durante a tarde, bebedeiras,
zoeiras de guitarras ao entardecer.
Sou um homem são porque me tornei
um homem doente e um homem doente
porque longe da febre. Os dias são iguais,
os quarteirões são de esquinas calcinadas
e o vento que antecipa o inverno
é uma canção e uma mágoa – lira que
teve a minha voz antes de ser vazia.
Ao final do dia voltarei para casa.
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Gostei muito, amigo.Um dia destes colocarei no meu blogue.Posso?
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