domingo, 21 de fevereiro de 2010

conto

"É como retornar a uma corrompida idéia de alegria" - pensou Lucas, quando a estrada começou a descer e a cidade surgiu, baixa e fumegante, espalhada por toda a linha do horizonte. Dentro do carro, e porque as janelas estavam abertas, o vento que entrava era um sopro incandescente e selvagem contra os rostos e os cabelos de todos os que viajavam: Lucas, homem de trinta anos de idade, magro, dentes arreganhados contra a luz e os ventos, de modo que o seu semblante era uma careta que parecia soma de espasmos musculares tidos durante algum pesadelo tão intenso quanto vago; uma mulher de esvoaçantes cabelos castanhos, óculos de lente escura, rosto ungido por fina e reluzente camada de suor, e um vestido que deixava à mostra os ombros claros, ossudos, e, ainda assim, sensuais na exata medida em que preservavam sinais de uma juventude para sempre ultrapassada; e, no banco de trás do veículo, adormecida, uma criança de seis ou sete meses de idade, cabelos de um castanho claro que, de tão finos, não eram mais do que uma penugem, e a pele lambuzada por branco e perfumado protetor solar.

Centenas de metro adiante, o sol se escondeu por trás das nuvens cor de chumbo e o que caiu, sobre a estrada, foi uma sombra também plúmbea, a qual tornava mais forte o cheiro dos canaviais queimados – um cheiro que, somado ao calor, transcendia o estado gasoso, dando origem a um mormaço tão úmido quanto 
sólido.

"Então é aqui?" – a voz da mulher soou como se fosse mais uma manifestação do vento e do calor, pois os sons sumiram logo a seguir, sem deixar eco, algo como o fantasmagórico ruído de uma peça de madeira estalando durante a noite.

"Sim, é aqui" – respondeu Lucas, que, talvez por descuido ou talvez por encantamento, permaneceu com a boca semi-aberta após a formular a resposta. Mais do que nunca, tinha os dentes arreganhados contra a luz e os ventos. Os olhos, em contrapartida, estavam cerrados como se ele quisesse fitar, na linha do horizonte, uma distância impossível de ser alcançada por olhos humanos. Pela primeira vez no dia havia doçura no cheiro dos canaviais incendiados – e este olor tão doce e enjoativo, à medida que se aproximava o crepúsculo, apenas aumentaria e depois, como se tivesse atingido o esgotamento, sumiria - deixando, na noite, o ardente perfume de mato, flores selvagens, animais despertos e ariscos. Enquanto tudo isso acontecia, dentro do carro, o cheiro mais forte passou a ser o de carne cansada, indefesa. Lucas olhou para o lado. Olhou para a esposa que, pela primeira vez durante a viagem, tirava os óculos de lente escura. Ela tinha o rosto ungido pelo suor e queimado pelo sol que, durante a tarde inteira, caíra sobre o carro. Apenas ao redor dos olhos a pele mantinha-se clara, de uma brancura que, Lucas sabia, simbolizava uma impossível pureza (e, no centro dessa impossível pureza, tremeluziam dois olhos claros e assustados). Lucas, enlevado, quis beijar a fronte da mulher: em vez disso, apenas sorriu, ou seja, tentou conferir alguma ternura aos seus dentes arreganhados.

"Sim, é aqui" – repetiu após rir mecanicamente, a voz quase inaudível. A seguir, olhou para a mulher e depois para a criança adormecida. Ficou melancólico, como se toda a alegria o lembrasse de algo que nunca deveria ser lembrado, algo que nunca deveria ser uma verdade.

Um comentário:

  1. Oi, Daniel. Vindo aqui, lembro dos velhos tempos do Desaparecido. Continuo gostando do que você escreve.

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