Como os mortos, estou nas trevas
e mantenho os olhos abertos
como alguns mortos persistentes.
Então respiro, e isso eu sei
que os cadáveres não fazem.
Respiro e sinto afundar-me
na insônia mais espessa.
Com as retinas abertas pela noite
é possível escutar tudo o que reverbera.
Um cão ladra. A madeira dos móveis estala.
Há o constante motor das máquinas.
Há o mofo ou apenas a umidade
que se desprende das paredes como
uma ameaça ou uma carícia.
Acendo as luzes. Ergo-me na cama
e o tempo se reconstrói
com a nitidez, com a dureza
que não existe nas horas de trabalho.
Alguém dirá "longe, há quem morra agora"
e não será mentira. Outro dirá
(e também não será mentira)
"longe, a carne convulsiona
e arrefece batida pelo próprio gozo".
Mas o que importa o que é alheio
quando as horas tentam escapar de ser fóssil
ao serem rasgadas por relâmpago de luz elétrica?
Sentado à beira da cama, olho para o chão.
Meus pés me parecem mais sanguíneos,
mais inchados e disformes do que me lembrava.
Talvez isso aconteça porque o não dormir
é ligar-se a uma imagem primeira de corpo
e não mais olhar para si próprio.
Mas a insônia é mais do que o não dormir.
A insônia é o estar preso entre as penumbras
e as luzes súbitas, preso ao hiato entre
evocar o real e confrontar o real.
Ando pela casa. Na sala descubro um rumor d'água
e observo o aquário de brilho escarlate.
O peixe nada em agonia por que o horizonte repete-se
ou por que o oxigênio está mais escasso?
Sem compreender, olho para o peixe
e olho para as paredes em redor.
Sei onde estou porque é onde sempre estive.
Sei onde estou porque aqui é a casa
onde todos nós sempre estivemos e onde
um dia não mais poderemos estar.
E é a casa – não os móveis, não o peixe,
não a voz aquosa e rubra dentro da madrugada –
o que escuto com mais clareza
e o que escuto é
a casa é algo que vai terminar,
o corpo é algo que vai terminar,
a noite é algo que vai terminar,
estar aqui é algo que vai terminar.
Retorno ao quarto. Ao frêmito doméstico
soma-se o ecoar dos meus passos.
Estou nas trevas novamente.
Os olhos estão abertos.
O coração está coroado de sangue.
Por entre as mofadas nervuras das paredes
há o tempo e por vezes o tempo
é um rio vermelho, infindável, a rumorejar
como se fluísse entre as minhas próprias veias.
terça-feira, 13 de julho de 2010
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