sábado, 15 de agosto de 2009

Dia (poema)

DIA

1.

"Não apenas a memória da mente
dissipa-se; também o corpo perde
vestígios do que foi carícia e mágoa,
talvez um ocaso mais doloroso
do que o do dia que se quebra em cores
esbraseadas, rubras, violetas
e depois, quando o ar cheira a queimado,
não há mais ecos do que existiu."

Escrevia, sonolento, enquanto
o ônibus avançava pela estrada;
manhã limpa e paisagem clara
até o quilômetro em que os destroços
de um acidente ocupavam a pista:
entre a ferragem retorcida, sangue
e, mais adiante, um pano imundo
era o sudário que cobria os mortos.
Perto, grande tumulto de fotógrafos,
policiais e enfermeiros. O trâfego
não fluía e, no interior do ônibus,
um bufão com ares de corifeu
falava dos incontáveis cadáveres
deixados às margens dos canaviais.

O ônibus seguiu, os versos ficaram
inacabados e também a dor do que some
sumiu na transparência azul da manhã:
tanto a morte como a memória são
máculas que o sol trata de queimar.
Mais alheio do que cansado, fecho
os olhos e nem sequer no trabalho
os abro de novo; é como um sonho
no qual escrevo a data tantas vezes.
O ar cheira a papéis podres, histórias
de louca mesquinharia, e às vezes
- ainda cego, alheio, sonâmbulo -
percebo um corpo feminino perto
de mim: percebo o rosto claro, sardas
nos ombros e no colo, e o castanho
pálido dos olhos é um trigal
afogado pelo sol quando o sol
não queima e é um vento de calor.

2.

Ao entardecer, de regresso no ônibus,
vejo as nuvens que se incendeiam pela
última vez no dia – transparência
ora rubra, ora dourada, suja
por ventos que são desejo e cansaço.
Torno a fechar os olhos, tenho o corpo
mais do que velho: doído; e mais
do que doído: batido por fogo
que é mais do que o fogo da carne, mais
do que o fogo que comigo nasceu –
chama roubada de outros corpos, de outros
olhos; chama que ao se esvair avisa
o que a consciência nunca terá
e o que o coração teve por engano.

"Raiva, raiva contra o morrer da luz" –
o verso de Dylan Thomas ecoa
enquanto o ônibus entra na noite
e enquanto os corpos caem na penumbra
quente, grossa. Atrás de mim os velhos
falam do rapaz que morreu na manhã.
Parecem tristes mas depois gargalham
enquanto dividem uma garrafa
de aguardente ou conhaque; e lá fora
- prostradas sob a luz quieta e puída -
as putas esperam seus corpos magros
e seus gestos vencidos, pois a carne
talvez não seja mais do que delírio
que perde o lume, delírio que avança
pasmo ante os mortos dos canaviais
e ante os fantasmas de mágoa e carícia
que ascendem à pele no doloroso
vazio entre sonhos mais violentos.

sábado, 1 de agosto de 2009

em tempos de gripe suína, outro poema antigo

ORÃO, SETENTA ANOS APÓS A PESTE

Saímos, eu e um amigo, para jogar bilhar.
No salão, um velho acompanha a disputa.
É um antigo morador do bairro
e o seus olhos opacos denunciam
uma vida que não excedeu as fronteiras.
Observando-nos, parecia indagar
a alma da própria cidade: também ela
é muda ante o esvair dos anos
e, imerso na profunda noite, o velho
balbucia palavras e monótonas
e repetidas sem cessar:

"Ah, talvez a vida tivesse mais sentido
se tudo fosse como outrora:
os pais barbeando-se com navalhas,
as crianças aprendendo latim
ventos cálidos trazendo o entardecer
e ocultando o demônio da peste e do exílio,
na hora do jantar o cheiro da carne grelhada
pairando sobre a cidade sem prédios,
longas filas diante dos cinemas
que exibiam filmes a branco e preto,
o vizinho que deixa a noite mais sentimental
ao ouvir Tommy Dorsey,
o dissimulado pudor das raparigas,
a promiscuidade dos jovens solteiros,
a murmurejante agonia dos amantes
trespassados por uma súbita abstinência,
o veloz carro de Rieux, o médico,
indo consultar os doentes que morriam
em todos os bairros da cidade."