quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Cadernos de Viagem: Nunca Mais

A cidade era cercada, do lado leste, por uma dessas gigantescas indústrias que escavam o solo sem qualquer motivo aparente. As silhuetas das imensas chaminés eram pilares de sombras que recortavam o cada vez mais noturno azul do céu, enquanto o vapor emanado se enrodilhava na caída luz que as montanhas do oeste tratavam de filtrar, fazendo oblíqua a última claridade do dia. Na auto-estrada que, ao cruzar a cidade, tornava-se a própria main street, os carros seguiam impulsionados por uma força autônoma a qualquer comando. Um lugar tão neutro e opaco que, poucos quilômetros adiante, não perdurava mais qualquer indício de sua existência. Agora o breu noturno caíra sobre o deserto. A sujeira emanada pela indústria já se diluíra na imensidão sem nuvens. Foi então que percebi um céu estrelado como nunca antes. Um céu de constelações tão baixas e cintilantes que, naquele momento, eu soube que estava diante do que poderiam ser as neves de outrora: um abismal emaranhado de astros de toda a sorte; estrelas cadentes que riscavam um quadrante celeste e desapareciam; e o luar líquido, enorme, central, não importava quanto o carro avançasse. Eram os últimos dias daquela viagem que eu havia esperado como quem espera uma canção que, ainda no primeiro momento em que a melodia trazida pelo vento sussurra distante e quase inaudível, é plena de umaalegria certa nos sons que se avizinham. O coração nunca deixa de estar ferido.

E o regresso se torna mais definitivo quanto mais límpida é a consciência do lugar para onde se regressa. Em geral, esta consciência do retorno e a consciência de estar em determinado lugar não são diferentes da própria consciência da morte. Em outras palavras: sabemos e não sabemos que iremos ter fim, embora existam dias nos quais esta consciência do fim venha com muito mais clareza do que na maioria dos dias. Então eu acabo?, abisma-se o coração dentro do próprio peito. Então os meus olhos são pérolas que nunca espelham o infinito?, percebem os olhos subitamente nublados por uma sujeira que é a impossível soma dos dias.

Igualmente, seja durante as cansativas jornadas de retorno, seja durante as idênticas tardes ou noites em que estamos em casa, sabemos e não sabemos que retornamos, sabemos e não sabemos que estamos em casa, sabemos e não sabemos que nos despedimos. E então, como que chicoteada pela clarividência de qualquer coisa que está em cada um e é maior do que cada um, sabemos que retornamos, e sabemos que estamos onde nascemos, e sabemos que tudo é nunca mais, e eis que a consciência é rasgada ou pela memória do quarto dos primeiros anos, ou pela antecipação da queda da casa na qual ainda dormimos, ou pelo abismal confronto com qualquer coisa que está aqui apenas para não estar mais aqui. Sempre e sempre.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Cadernos de Viagem: Tudo Continua

Não pertenço a estas planícies
ou pântanos, ou montanhas
de uma terra que para mim
é o norte não apenas físico
mas também o norte de um espírito
que eu quis tornar meu: uma carícia
tida em sonho e que ainda continua
pois tudo continua. Os fantasmas continuam
ainda que ninguém evoque os seus nomes
e também os sonhos continuam
ainda quando evaporados e ainda
quando o ar da tarde parece certo
e sem dores e assim sem dores
o amor continua
ainda quando apenas um solitário riacho
flui por um coração que apenas se desbrava
durante aventuras em novos e estranhos mares;
novos e estranhos e perdidos mares que continuam
qual o passado continua
e com o passado todas as sombras continuam;
todas as sombras que avançam,
todas as sombras que se tornam transparência
de pálido júbilo ou pálida morte - vazio
róseo ou dourado ou carmesim
que escava o céu naquela hora
em que nada existe para que tudo exista.


                                                                   escrito em Dallas, quarto de hotel.