terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Trecho (Zanzi Bar)

Eu nunca bebi um bom drink no Zanzi Bar, que também não é um lugar de boas mulheres. Ainda assim, a cada três ou quatro meses, eu e todos os integrantes de nosso pequeno grupo para lá retornamos com os corações renovados por generosas expecativas. O motivo de tantos retornos é simples, melancólico: não é fácil viver por essas plagas e não é todo mês que é possível dirigir por quatro horas até a capital. Nessas ocasiões hospedamo-nos na casa de Illinois, que, embora viva distante desde o início da vida adulta, também nasceu no nosso pequeno vilarejo. De todo modo, seja na metrópole ou nos pântanos que nos serviram de cenário para a infância, o objetivo é gastar algumas noites de sábado entre luzes faiscantes, bebidas preparadas com esmero e raparigas que sabem se maquiar. Sursum corda!, eu também poderia gritar sobre o que nos tirava da inércia, sem estar errado.


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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Paizinho, Paizinho (trecho)

Ainda espero por Vladimir, disse o velho e então voltou os olhos na direção do portão aberto para a pequena rua tranversal à entrada da igreja. Uma rua tão quieta que não existia, ali, uma natural fluidez regendo a alternância entre silêncio e barulho. Era como habitar um planeta vazio até que algo rachasse, quebrando a espinha dorsal de uma gigantesca mudez, e, ainda assim, este rumor clandestino nunca era distinguido com clareza: um murmúrio que bem poderia ser o vento sobre as árvores podia se revelar como o ecoar de passos sobre a rua seca. Nessa vertigem as tardes declinavam até que um novo ponto de inércia fosse alcançado: a fraturada abóbada de silêncio deixava passar um único sussurro tão logo a luz começava a esmorecer. Era o invisível e fantasmagórico farfalhar das asas dos pardais que, organizados em grupos, invadiam as copas das árvores que ocupam a praça defronte à igreja.


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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Holiday Blues (trecho)

A manutenção da felicidade: esta era uma das maiores preocupações de Anthony nas semanas que precederam o casamento, talvez porque houvesse a suspeita de que, em algum momento, a vida perderia mais do que o seu centro – perderia a dádiva de se ligar ao centro de outras existências, que era a única forma de alegria e comunhão que lhe pareciam possíveis. E essa possibilidade de conexão com outros centros era muitas vezes comparada por Anthony com o que os cientistas convencionaram chamar de matéria escura, ou seja, algo como uma cola primordial, cujo único efeito conhecido é manter a coesão entre os bilhões de aglomerados de galáxias existentes. No entanto também é especulado pelos cientistas, e também isso era do conhecimento de Anthony, que, em oposição à matéria escura, há no universo uma outra força ainda mais inexplicável, e inexplicável porque atua em completa oposição à matéria escura. A combinação entre esses dois fenômenos pode ser explicado com a imagem de um cabo de força tão antigo quanto derradeiro, e o mais desolador, ainda especulam os cientistas, é que ao final as forças desagregadoras irão prevalecer. Soltos no espaço, os aglomerados de galáxias se afastarão para as longínquas periferias do cosmo, a príncio dispersas uma das outras, depois se dispersando em si mesmas, até que o espaço não seja mais do que uma última onda de poeira cósmica lançada para fora enquanto no centro vige um negror absoluto.

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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Um Homem Deseja Ir, Um Homem Deseja Voltar

Tantas vezes coube o céu em meus olhos
que o próprio céu se mudou em raiz
saída da fundura mais doída.
Entrava nova estação e eu sabia
que luar a cingiria e qual fogaréu
traria as cinzas do dia futuro.
Era belo, mas também magoava
e deste encanto onde cantos eu
buscava vinham a idéia de que Ítaca
era minha e era o que me bastava.
Em Ítaca, mar e céu são inteiros.


Mas Ítaca não existe se não
existe casa para trás deixada.
Preciso é que a distância se desdobre
não em algo maior ou nunca visto
mas em algo que o sangue não conheça
como seu, ainda que imagens gêmeas
sejam dos muitos dias repetidos.
Eis o luar, e o lusco fusco,
e a luz embebida em luz, fogo leve,
não diferente da brandura de abril
embora lá fosse a agonia de setembro.


Um mundo multiplicado em espelhos
é imenso ou é repetição?
Longe, encontrei beleza daqui
diversa, mas o que me aturdiu
é que o pólen de todo o coração
é soprado por um único deus
ou é vestígio de única ruína.
Longe, outras ítacas encontrei
e quanto mais eu as tornava minhas
mais a casa deixada para trás
era dor que ia do branco ao vermelho.

domingo, 17 de outubro de 2010

Sobre o Verão

O céu é uma sombra baixa.
Uma sombra cuja impureza
é egressa da primavera
e da fecunda poeira
que em rubros espirais
subiu em busca do sol.


Mais véu do que nuvem
nenhum fogo o varreu
até que o vermelho
viu o redobrar da luz
e a chegada de dia longo:
vulto pesado, esmaecido
e um coração escuro
trespassado pelo que restou
das colheitas e dos festivais.


Mais do que açoite, a calidez
que à noite assoma
é o tremor de uma corda
até o limite tensionada
e não há consciência
que não perceba esse tremor
como uma voz interna e voraz.


O dia e a noite serão tristes
se não houver mar ou açude
para que o corpo afunde
e o dia e a noite serão tristes
se a doçura de nenhum fruto
não manchar o crepúsculo
e se a acidez de nenhuma vontade
não se abrir ao luar
e não for bebida por bocas
presas ao travo da juventude.
Apodreceremos juntos: eu, você,
o coração, a carne,
o vigor do abraço que do seu corpo
nunca obteve o molde.

domingo, 10 de outubro de 2010

Trecho



A terra de um homem é onde os seus pés pisam, eis uma frase bastante dita por Gregor Duduch, velho exilado das brumas irrecuperáveis de um mundo que, após convulsionar de ódio e miséria por duas vezes no espaço de duas décadas, terminara os seus dias como plantador de café nas áridas planuras do nordeste paulista. Ele dizia a frase com um tremor na voz. Como se as palavras estivessem cravadas em seu coração e de lá não pudessem ser extraídas sem uma dor que ultrapassasse os limites desse próprio coração, e, ainda depois de proferidas, o que permanecia em Gregor era um vazio de margens trêmulas, que pouco a pouco – como uma maré que desce – perdiam fundura e alcance, até a própria certeza de espírito árido se esvair em si própria. A frase era obviamente uma mentira, mas Gregor a proferiu tantas vezes que esta farsa tornou-se o maior tema de seu envelhecimento; tema este que alcançou a sua variação mais desesperada quando Gregor Duduch, agora um corpo quebrado pelo câncer, o azul dos olhos recoberto pela opaca membrana da morte próxima, disse a terra de um homem é a terra onde o seu espírito foi esquecido. As palavras foram ditas a Luís Fonseca, o seu genro, mas não se tornaram célebres como a sentença banal e mentirosa que se pespegou a Gregor com a natureza simbólica de um epitáfio.

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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Uma Cidade Ainda Menor

A uma cidade ainda menor cheguei.
Vim por estrada antiga, pontuada apenas
por vazia tristeza e igual a cemitério
de sepulcros sem lápides – cada morto é
cruz de ferro sem nome que o barro arruinou.


Em manhãs fogaréus, diviso orvalho e cinzas
e diviso a planura que, finda a colheita,
incendiada foi. E penso: "igual fado
queria que tivesse o amor, após deixar
encarnados fantasmas no escuro da mente".


Mas cérebro de fogo não há, e à cidade
ingresso, relutante, as memórias presas
a maiores lugares e ao maior anseio
de impedir que desbotem esmeralda e rubi:
olhos e corações que me foram raízes


e que longe queimaram. Praças das infantes
chuvas e das infantes catedrais, mortos deuses
no céu de estrelas mortas; céu cujo luar
foi primeiro sudário e rito irremível
para o encolher do espírito, que morada teve


em ínfimos quinhões: aurora de rosada
orla e ocaso de rubra espuma - dois ardores
e entre eles tolhido arquejar e tolhido
esbrasear da pele ante a mais leve sombra
do exílio que se vence e das devolvidas


aves em adejar manso – tudo a lembrar
como a terra seria dócil se as mandíbulas
do dia se quebrassem, se o longo labor
não findasse em poeira vermelha ou em pai
a pedir: "é chegado o dia da indulgência?"


Atônito, calo-me e penso em escapar
do vilarejo como um dia desejaram
os velhos que diante de mim perambulam.
Ignoro o que por eles foi consagrado
quando jovens, muito antes de aqui aportarem,


quando um corpo era santo pois podia ser
aberto em mil sabores e mil plenitudes
saborear queria. Luz primordial
é luz somada a luz, é sonho de que tudo
fecunde na partilha, mundo milagroso


e no mundo nenhuma morte, queda, pranto
e nenhum animal agônico: cavalos
cegos, cães mutilados, homens encaminhados
de onde o sol tem mordida mais feroz.
São estes os homens que a terra queimarão


e o dia findará como se não houvesse
fim. Ventos endurecidos, calor dobrado,
crianças entre as sombras, sussurros voltados
ao morto vespertino e, alheia a tudo isso,
uma voz rumoreja, clara, na hora escura.


Um açude também existe, mas não sei
a fundura ou pureza da água que abriga
os pássaros do estio em fuga, inscientes
(negras e brancas plumas do sono e do sonho)
de que evocam a infância de homem já caído.

sábado, 28 de agosto de 2010

Poema

MARISE

Sal, espuma, sol: de Marise a pele

parece ecoar ardências perenes
ou ardências somadas tão velozes
que entre elas não há vazio maior
do que há entre o arfar saciado
e o voraz arfar, cada qual nascido
de amante distinto e insciente
de que o louco sangue do coração
pode ser o do outro e, no entanto,
nada pulsa que dê a dois ardores
mesma língua e mesma duração.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

Poema (enfim corrigido)

1.


De todas as lindas garotas, tu
foste a primeira a encontrar terrível
desterro - e terrível é porque anjos
não te acolhem, porque a catedral
é pedra sobre pedra de silêncio
e porque de teu coração, aberto
às raízes nada germina além
de escura seiva. Foi jovem o sol
e agora, o que é jovem, é inútil
como o que resta, no frio balneário,
de claro festival: a orla avança,
o sal rói os brinquedos, os barcos
nunca mais partem porque água e céu
são inóspitos e porque as gaivotas
as máquinas arruinaram, gaivotas
que são todo movimento que há.


2.


De todas as lindas garotas, tu
foste a primeira a encontrar distância
sem limites; silêncio sem tremor
de palavras futuras; irmãos
sem gestos e sem rostos conhecidos.
E se ainda tens olhos, olha Cristo:
vê como o coração, eterna chaga,
deixou de sangrar e relembra a hora
em que as órbitas volveram sem vida.
Sobre a tarde caiu negro relâmpago
que se afundou na terra, mas não fundo
a ponto de macular as nascentes.
O coração todo seiva esgalha-se
e volta a subir porque um coração
nunca é subterrâneo e nunca morre
sem paixão de ser claro festival.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Laura (7 cantigas)

1.


Porque um homem não a teve, Laura,
uma primeira canção foi criada
para ti, também a primeira amada
que não foi sombra, mito, ou aura.


2.


Dia ou noite, basta ter longo olhar,
para saber de Laura: o verdor
dos arvoredos e o negro calor
são sementes no coração sem par.


3.


Se falo da tristeza das vazantes
é porque sei do rio cuja nascente
é o fundo beijo de Laura – fremente
eco de sereia sussurrante.


4.


Fim de tarde, caem seguidos véus
sobre Laura; langor e silêncio tornam
o corpo manso; da chuva retorna
a doçura dos olhos cor de mel.


5.


Canta Laura: a infância foi fruto
de polpa escarlate e casca amarela.
Pousava a noite sobre a casa velha
e eu não temia o que era maduro.


6.


Laura descalça em terra semeada,
os seus pés esmagam o hortelã –
não importa que a vida seja vã
se existe canção pelo sol manada.


7.


Ainda ouço o grilo e a última estrela.
Laura aqui dormiu, junto às ninhadas
que à vida aportavam. Aurora opaca
também mata o jasmim e a açucena.

domingo, 25 de julho de 2010

Débora

Tantas vezes olhei Debóra:
o cansaço, em seus olhos,
surgia-me como a terra
em dura estação, cujo espólio
bate a agonia de raízes.

Pois Débora, ao final
do dia ainda lancina -
o corpo, eco animal,
pede o luar que cintila
e que as muitas matizes

do que é moreno o dourado
alcancem: fulgor vermelho
da aurora, coroado
e bruto lume, espelho
de olhos feito chafarizes.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Poema

Como os mortos, estou nas trevas
e mantenho os olhos abertos
como alguns mortos persistentes.
Então respiro, e isso eu sei
que os cadáveres não fazem.
Respiro e sinto afundar-me
na insônia mais espessa.


Com as retinas abertas pela noite
é possível escutar tudo o que reverbera.
Um cão ladra. A madeira dos móveis estala.
Há o constante motor das máquinas.
Há o mofo ou apenas a umidade
que se desprende das paredes como
uma ameaça ou uma carícia.


Acendo as luzes. Ergo-me na cama
e o tempo se reconstrói
com a nitidez, com a dureza
que não existe nas horas de trabalho.
Alguém dirá "longe, há quem morra agora"
e não será mentira. Outro dirá
(e também não será mentira)
"longe, a carne convulsiona
e arrefece batida pelo próprio gozo".


Mas o que importa o que é alheio
quando as horas tentam escapar de ser fóssil
ao serem rasgadas por relâmpago de luz elétrica?
Sentado à beira da cama, olho para o chão.
Meus pés me parecem mais sanguíneos,
mais inchados e disformes do que me lembrava.
Talvez isso aconteça porque o não dormir
é ligar-se a uma imagem primeira de corpo
e não mais olhar para si próprio.
Mas a insônia é mais do que o não dormir.
A insônia é o estar preso entre as penumbras
e as luzes súbitas, preso ao hiato entre
evocar o real e confrontar o real.


Ando pela casa. Na sala descubro um rumor d'água
e observo o aquário de brilho escarlate.
O peixe nada em agonia por que o horizonte repete-se
ou por que o oxigênio está mais escasso?
Sem compreender, olho para o peixe
e olho para as paredes em redor.
Sei onde estou porque é onde sempre estive.
Sei onde estou porque aqui é a casa
onde todos nós sempre estivemos e onde
um dia não mais poderemos estar.
E é a casa – não os móveis, não o peixe,
não a voz aquosa e rubra dentro da madrugada –
o que escuto com mais clareza
e o que escuto é
a casa é algo que vai terminar,
o corpo é algo que vai terminar,
a noite é algo que vai terminar,
estar aqui é algo que vai terminar.


Retorno ao quarto. Ao frêmito doméstico
soma-se o ecoar dos meus passos.
Estou nas trevas novamente.
Os olhos estão abertos.
O coração está coroado de sangue.
Por entre as mofadas nervuras das paredes
há o tempo e por vezes o tempo
é um rio vermelho, infindável, a rumorejar
como se fluísse entre as minhas próprias veias.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Poema

O céu era permanência negra.
Sem deixar eco ou memória
o sono desmanchava o tempo
e o que restava, vento exíguo,
sumia na plúmbea penumbra
do recomeço das horas.
Fora do sonho, o primeiro rumor
foi brisa de orla úmida
a descer do céu sem peso
e a tornar pesadas
árvores de pálido verdor
habituadas apenas ao orvalho.
Da terra, o arquejar longo
e molhado foi o próximo cheiro:
durou pouco, e quando acabou
foi como se não tivesse existido.
Acima dos telhados, esbatido,
o luar era suja, brônzea distorção.
Cá embaixo, nem sequer os cães
tiveram o sono violado
ou limpas as gargantas.
Desperta, uma mulher. A pele
suja e castanha como o luar
embora, para a mulher, a sujeira
fosse resquício do último abraço
e o ofegar castanho, horizontal,
fosse  o exílio do suor
a cintilar na cinza penumbra.
Triste reencontrá-la hoje, no estio
dos amarelos dias de inverno.
As árvores de pálido verdor
são agora esqueletos, são agora
os magros embriões do porvir.
Da terra, o frêmito que sobe
foi decantado a ponto
de imitar o canto do avô morto
para nada ser no instante seguinte.
O luar, cingido por anéis de poeira,
é de um vermelho gasto como
sangue diluído em leite.
A mulher, hoje sonolenta,
tem os olhos presos à paisagem
e a pele ainda brônzea
e cansada como algo
que chama – voz lúbrica –
até queimar o próprio chamado
(como sereia que vai ao areal
nada encontra e morre ao relento,
a carne fustigada e salgada).
Cai a sombra violácea da noite
e sobe a rubra sombra do luar.
"São noites de pouco sono
e de tanto que dói para respirar
ontem coloquei sangue pelo nariz" -
diz a mulher, cujo olhos
são vitrais a guardarem o duro lume
do rosto que se tornou mais forte
do que o luar que se estiola
para além das vidraças.

domingo, 27 de junho de 2010

Trecho

Cansado de tanto pensar, e do medo, e da máscara de mudez, e do exílio do amor físico, Peter recostou-se na espelho ao fundo do elevador e fechou os olhos. Segundos depois percebeu que seu corpo era interpelado pelo corpo de Mary. Não precisou abrir os olhos para saber que ela tentava se moldar a ele, também exausta. Estranho como a pele de Mary, ainda que através do grosso sobretudo, permanecia álgida. E Mary, com o rosto colado ao do amante, indagava-se se realmente seria triste não estar mais ali. Em geral, a resposta que tinha era a de que seria triste estar em qualquer lugar. Noutras vezes a consciência da dúvida permitia que Mary fosse ceifada por uma tristeza oriunda de uma mistura da ternura e culpa - tudo unido, tudo compondo um único réquiem, tudo exercendo um estranho papel coadjuvante; como se o que movesse a existência ultrapassasse qualquer sentimento nominável. Algo como a rotação da Terra, cabendo aos sentimentos o papel dos pequenos corpos presos a esse girar em torno de si próprio (satélites, pedras alienígenas, poeira de estrelas - pequenas existências incapazes de se incendiar na atmosfera e incapazes de escapar da força que as mantém ao redor de um corpo maior, perdendo-se na fria e esvaziada liberdade que nada significa).

conto completo  aqui

terça-feira, 11 de maio de 2010

Duas Novas Garotas

JULIA


Das meninas que vejo, Julia é a mais alegre
porque Julia é a mais jovem entre todas –
e se há algo que adoro, é essa frágil crença
que atribui a mais impoluta luz
àquilo que é mais tenro. Assim
- como se fosse nascida estrela de maio -
vejo Julia a rir, vejo o rosto de Julia
ser corado por mais do que sangue (lume
feito de amores tão primordiais quanto falsos)
e vejo a sagração do que floresce
para a colheita: seios ainda pálidos
e febris, raízes que vão do coração
às menores palpitações do gozo.
Pois Julia, irascível retorno da beleza,
é a promessa de que alguma ordem
pode ser extraída das tardes de esplendor
e mesquinhez – Julia, enfim,
é como o claro dia em que
homem como eu não pode mais ingressar.


TAUANA

Há quem ingresse no tribunal
sem nunca lamentar as tardes perdidas.
Espero que Tauana – a terceira
entre as meninas do Ministério Público –
escape dessa sina.
Sobre ela sei tão pouco. Até os risos
que me dirige soam exilados do que existe
no rosto ainda lacerado pela puberdade.
Sei apenas, ou melhor, apenas adivinho
que o seu corpo, quando tomado,
é túrgido rubro e rígido
como as prematuras ameixas de novembro;
uma dessas frutas cujo primeiro sumo
é de uma acidez além do suportável
e a cujo esgotamento, de tão inconsolável,
um homem reage com ternura
quando deveria ser violento, e com violência
quando deveria ser apenas terno.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Soneto 3

MUSAS ALHEIAS (SONETO 3)


Rebel rebel, you've torn your dress
Rebel rebel, your face is a mess
Rebel rebel, how could they know?
Hot tramp, I love you so!
David Bowie, "Rebel Rebel"


Não creias, Lídia, que o teu corpo é dádiva
que incólume se goza – assim fosse,
triste animal não seríamos: há
o sol e o fado, e da morte a foice


não é o que os une: mas as diáfanas
horas mudadas em fuga, e flores
transformadas em areia, e mágoa
tornada legado vil, nada doce.


Não, não creias que o teu corpo é vitória.
É boca ácida a tua, embora terno
o abraço: chaga aberta, sem memória


de que a mudez é sina de todo afeto
de que cada dia é dissoluta hóstia
de que há um único verão e inverno.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Soneto 2

Um corpo caído é o grande exílio
do que ainda viceja. Cinzas, terra –
em tons rubros, a tarde cai e apela
ao que nunca houve, ao mais elíseos


bosques fecundados por olhos vítreos,
à inocência da nódoa na lapela
do traje com o qual o homem ingressa
à hora da qual não sairá: períneo


roído entre vestes roídas, órbitas
vazadas sob um céu vazado, jasmim
como alento último de canções mortas,


e a boca imóvel, pálido carmim,
nada pede, ou chora, ou exorta.
O que está caído alcançou o fim.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Soneto 1


À César o que é seu, e à menina
o que lhe é cativo: luz gentil
e murmúrios – uma ode pueril
para que lhe seja alheia toda a sina;

fado que ainda em céus de cartolina
se desenha: cruel, inverossímil
pois desgarrado do céu mais anil:
as paixões e as horas são assassinas.

Mas o fado de um, é o fado do outro
e também à César é essencial
tênues cantigas, e em cálice de ouro

beber o néctar da luz outonal,
ir ao léu, e a companhia de um tolo
é a que mais se lhe afigura ideal.

domingo, 14 de março de 2010

Poema

A CATEDRAL


“Amo a igreja – as imagens de seus querubins, seus
candelabros, suas alfaias de prata, seus
ícones, luminárias, púlpito, amo-os eu.”
Konstantinos Kaváfis

A catedral está fechada, mas olho-a.
Vejo-a como quem vê um mausoléu,
o gelado mármore que sepulta
os demônios de minha mãe.
E assim, soberba e fúnebre, a catedral
fere o coração da cidade.
Todavia acredito piamente
que a catedral seja um refúgio para o homem
e um sepulcro para os seus demônios.
Acredito tão piamente que desejo invadir esta casa
e orar e ajoelhar-me perante um deus
encoberto pelo frenesi dos dias.
Acredito e de súbito vejo os olhos de pietá
a dizer que todos os refúgios são efêmeros.

domingo, 7 de março de 2010

não é uma pena?

UMA MENINA NO FÓRUM E OUTRA MENINA NA RUA




É uma aldeia ínfima
e, todavia, a lei deve alcançar
o que é ínfimo assim:
as casas baixas, os rostos derruídos
por algo mais cruel do que o tempo
e mais cruel do que todas as quedas –
pois queda não há. Não aqui
onde o ar é transparência carmesim
onde o dia é a inútil permanência
da luz.


Aqui, beleza não foi criada
por homens ou pelo acaso: não há catedrais
e o arrebol de franjas róseas.
Não há a pujança dos trigais
após a terra cheirar a queimado.
Não há cerejeiras prestes
a serem cantadas e prestes
a serem vendidas.


Aqui, também o tribunal
é uma casa ínfima:
não há colunas de mármore
ou a deusa de olhos vazados
ou o latim gravado
nos portões de entrada –
"Deixai aqui, ó viajante,
toda a esperança".


O que existe, na aldeia,
são corações estragados
como pianos deixados ao sol
e às chuvas. Há tardes em que o vento
- sobretudo no falso limiar
do outono que nunca chega –
sopra sobre as teclas
e alguma melodia reverbera
e é como se fosse possível
o arrebol de franjas róseas
o louro ondular dos trigais
a doçura derradeira e inútil
de cerejas cantadas e depois vendidas
ou vendidas e depois cantadas.


Mas o vento cessa. O sol encrespa-se
e a beleza auguriada
não foi mais do que augúrio.
Não foi mais do que a vã
força de um dia que se verga:


Pelos corredores do fórum, uma menina
sente sumir o orvalho de seus olhos
e o seu corpo é cansaço e vontade.
Pelas esbraseadas ruas, uma menina
cheira a sol e cabelos crestados
e o seu corpo é pisoteado pelas cabras
até se tornar inútil para a colheita.

terça-feira, 2 de março de 2010

consciência

SUAVE


Suave é o momento do sono:
entra em meus olhos e desabrocha
revelando mil pétalas negras
e sob as negras sombras das pétalas
repousam mil pedaços de mim,
repousam sem peso e contudo presos,
como raízes revolvidas na úmida terra,
raízes que ainda não cresceram.


DESMAIAM


Desmaiam os desejos e a vontade
e sufocados os pensamentos murmuram
como um rio em uma tarde de calor.
Nas margens as frondosas árvores
agitam-se como pássaros mudos
pois também os pássaros estão em silêncio.
Onde a sombra não bate a relva é seca
e triste ignora o lento fluir do rio:
a vida é maior que este pedaço de mundo.
Dos homens não há vestígios -
a tarde é eterna e a morte distante como o luar,
apenas os pensamentos eclodem, sólidos
como em uma inaudita tarde de calor.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

conto

"É como retornar a uma corrompida idéia de alegria" - pensou Lucas, quando a estrada começou a descer e a cidade surgiu, baixa e fumegante, espalhada por toda a linha do horizonte. Dentro do carro, e porque as janelas estavam abertas, o vento que entrava era um sopro incandescente e selvagem contra os rostos e os cabelos de todos os que viajavam: Lucas, homem de trinta anos de idade, magro, dentes arreganhados contra a luz e os ventos, de modo que o seu semblante era uma careta que parecia soma de espasmos musculares tidos durante algum pesadelo tão intenso quanto vago; uma mulher de esvoaçantes cabelos castanhos, óculos de lente escura, rosto ungido por fina e reluzente camada de suor, e um vestido que deixava à mostra os ombros claros, ossudos, e, ainda assim, sensuais na exata medida em que preservavam sinais de uma juventude para sempre ultrapassada; e, no banco de trás do veículo, adormecida, uma criança de seis ou sete meses de idade, cabelos de um castanho claro que, de tão finos, não eram mais do que uma penugem, e a pele lambuzada por branco e perfumado protetor solar.

Centenas de metro adiante, o sol se escondeu por trás das nuvens cor de chumbo e o que caiu, sobre a estrada, foi uma sombra também plúmbea, a qual tornava mais forte o cheiro dos canaviais queimados – um cheiro que, somado ao calor, transcendia o estado gasoso, dando origem a um mormaço tão úmido quanto 
sólido.

"Então é aqui?" – a voz da mulher soou como se fosse mais uma manifestação do vento e do calor, pois os sons sumiram logo a seguir, sem deixar eco, algo como o fantasmagórico ruído de uma peça de madeira estalando durante a noite.

"Sim, é aqui" – respondeu Lucas, que, talvez por descuido ou talvez por encantamento, permaneceu com a boca semi-aberta após a formular a resposta. Mais do que nunca, tinha os dentes arreganhados contra a luz e os ventos. Os olhos, em contrapartida, estavam cerrados como se ele quisesse fitar, na linha do horizonte, uma distância impossível de ser alcançada por olhos humanos. Pela primeira vez no dia havia doçura no cheiro dos canaviais incendiados – e este olor tão doce e enjoativo, à medida que se aproximava o crepúsculo, apenas aumentaria e depois, como se tivesse atingido o esgotamento, sumiria - deixando, na noite, o ardente perfume de mato, flores selvagens, animais despertos e ariscos. Enquanto tudo isso acontecia, dentro do carro, o cheiro mais forte passou a ser o de carne cansada, indefesa. Lucas olhou para o lado. Olhou para a esposa que, pela primeira vez durante a viagem, tirava os óculos de lente escura. Ela tinha o rosto ungido pelo suor e queimado pelo sol que, durante a tarde inteira, caíra sobre o carro. Apenas ao redor dos olhos a pele mantinha-se clara, de uma brancura que, Lucas sabia, simbolizava uma impossível pureza (e, no centro dessa impossível pureza, tremeluziam dois olhos claros e assustados). Lucas, enlevado, quis beijar a fronte da mulher: em vez disso, apenas sorriu, ou seja, tentou conferir alguma ternura aos seus dentes arreganhados.

"Sim, é aqui" – repetiu após rir mecanicamente, a voz quase inaudível. A seguir, olhou para a mulher e depois para a criança adormecida. Ficou melancólico, como se toda a alegria o lembrasse de algo que nunca deveria ser lembrado, algo que nunca deveria ser uma verdade.