segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

trecho

Oklahoma lembrou-se da infância, do roseiral que era cultivado por sua avó materna em um canteiro onde também cresciam hortelãs e outras ervas miúdas e sem nome. A idéia de que tudo aquilo estava acabado lançou, em seus pensamentos, a consciência de uma implacável mortalidade. Deu as costas para o roseiral e, ainda embalado por idéias funestas, virou-se para o galpão, passou a contemplar os candidatos que não paravam de chegar para a prova. Todos eles ingressavam no galpão pelo enorme pórtico que vinha do pátio e, acima das suas cabeças, também entrava a luz do sol. Agora ofuscante e poderosa pela primeira vez no dia, caía oblíqua e, ao ser refletida pelo piso frio, assumia a forma de um clarão que toldava a visão de Oklahoma como se fosse uma neblina. Por vezes, quando o vento era mais forte, esse borrão, cuja cor oscilava entre o cinza e o dourado, formava um torvelinho que nada mais era do que uma mistura desses dois matizes. Em outras vezes, tangenciando a claridade que se esbatia, era possível acompanhar a precisa trajetória de um raio de luz. Também havia momentos em que a paisagem assumia uma limpidez inesperada, ou melhor, a luz ainda caía oblíqua, o chão ainda devolvia a claridade em forma de borrão, mas esse caos de cores apenas emoldurava as pessoas que passavam pelo pórtico, e então Oklahoma evocava Eliot (Cidade irreal, / Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno / Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos, / Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.); referência literária que se mantinha enquanto o sol não se escondia atrás das nuvens pois, quando isso acontecia, o interior do galpão era tomado por uma claridade distante e de um azul vagamente esfumado, de modo que Oklahoma lembrava-se de uma passagem de Austerlitz: o personagem que dá nome ao livro relembra a sua adolescência no País de Gales, relembra os momentos em que contemplava uma barragem e sabia que, submersa nas profundezas das águas, jazia uma cidade inteira; e ao evocar esse fragamento de livro era como se todos ali, Oklahoma e também aquelas pessoas que o cercavam, habitassem essa cidade afogada e esquecida. Os outros, os que habitavam o mundo da superfície nunca se aventurariam por estes confins; estavam todos na capital e em importantes cidades da América e do Velho Mundo, ao passo que ele vivia um presente ininterrupto pelo simples fato de viver um tempo que não se ligava nem com o passado nem com o futuro do planeta: o que ele era e o que ele significava acabaria ali, destruído pela morte e submerso pelo presente de outros como ele.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Poema

Agora o sol arde-me sobre o rosto
mas passa o instante, e onde
há luz haverá apenas a memória da luz;
claro eco que também será
maculado e depois soterrado
pelas horas vindouras.

Ao relembrar essa transitória chama, a consciência
curva-se sobre si própria
como o homem que se curva sobre um poço
e pensa: algo morre lá no fundo.

Depois esse homem fecha os olhos,
respira o sopro que se ergue
e sobre o poço curva-se mais uma vez
apenas para perceber como as sombras
estão mais próximas:
lá na fundura, o que escuta
é o diminuto arfar de um animal
embora haja algo mais: a memória
de uma tarde de maio deixou de existir
e os rostos amados e a alegria
são estrelas em um céu que se afasta.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

dois poemas sobre garotas e a cidade

1. EU AS VEJO NAS ESCADARIAS DO PRÉDIO

Eu as vejo nas escadarias do prédio.
São três e quedam-se em silêncio.
A alguns metros, no salão de festas,
celebra-se um aniversário
em meio a risos de crianças
e a estouro de balões.
Mas elas não são convidadas
que se extraviaram: vivem
no prédio e talvez desceram
para respirar ares mais impuros
e porque a cidade, vista do alto,
é uma larga planície cravejada
de luzes quietas e sonolentas.
Mas aqui, quando olham longe
- para além do néon e das constelações -
a cidade adquire outro significado:
o antes monótono rebrilhar de luzes
muda-se no bafo que se emana
da carne ansiosa e sonâmbula.
Talvez por isso, das três meninas a mais
bonita, tenha pintado a boca
e use um belo vestido
apenas para descer até as escadarias.

2. EIS A TERRA SANTA: AS RUAS

Eis a terra santa: as ruas
nas imediações do salão de bilhar.
Até lá vou em tardes sufocadas
e em noites abrasivas e ansiosas.
É puída a luz que desce sobre os telhados,
as fachadas das casas são ruínas,
o ar grosso, poeirento, e as árvores
são hipnóticas em seu balançar.
Todavia, para onde quer que se olhe,
há miúdas: colegiais, balconistas,
bailarinas, vendedoras em comércios falidos,
enfermeiras, advogadas há pouco saídas da faculdade
e que, empertigadas, gastam as tardes
em escritórios de rábulas.
Tão logo as vejo, logo as esqueço
e talvez seja melhor assim:
o esplendor do sangue e da carne não perduram
mais do que poucos anos.
Mas há dias, quando o entardecer é arido,
em que agonia da beleza que se perde
é o mais forte perfume
que se respira enquanto o escasso vento
ergue torvelinhos de terra vermelha
e enquanto a luz convulsiona.
Essa terra santa, então,
muda-se em um lugar triste e maldito.
Há pouco a se fazer além de ouvir
os plangentes e alongados sons
que não parecem vir das flautas
dos bolivianos – pois a melodia
soa como um fóssil duro e silencioso
que, durante todo o dia,
o sol tratou de erodir.
Ouve-se também, nesses ocasos,
as andorinhas que em bandos
entram nas copas das árvores.
Assim prossegue o entardecer:
o que era incandescente e dourado
rebenta sobre a cidade
como se fosse uma onda escarlate.
Depois arrefecem todas as cores
e a consciência, cansada,
às vezes mal espera pelo próximo dia
e às vezes tentar salvar do esquecimento
a memória de ínfima e fortuita beleza:
por exemplo, a lembrança de uma garota
de rosto pálido, muito magra,
cabelos longos, lisos, e que oscilavam
entre o castanho e o ruivo.
Ela ia pela praça, e a luz fina e crepuscular
Incidia-lhe oblíqua sobre a face.
Acima de sua cabeça, pássaros voavam
e quando a claridade tornou-se penumbra
temi que as sombras recém chegadas
fossem despedaçar o seu corpo escasso
como, em tela pintada por Goya,
Cronos devora a própria prole.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Espólio do antigo computador - Conto: Quando Reencontrei Rubi

Reencontrei Rubi após cinco anos. Foi em uma sexta-feira, ao entardecer. Era véspera de feriado. Eu acabara de sair do trabalho e não queria voltar para casa. Preferi uma solitária sessão de cinema, havia pouca gente, mas lá encontrei Rubi. Os seus olhos castanhos, que no passado eram como a úmida sombra que se aloja no fundo de um poço, pareciam diferentes. Exceção feita a essa mudança, ela não me parecia mais velha ou mais cansada. Ao observar os seus gestos, lembrei-me de que às vezes ela dizia me amar e às vezes dizia ter vontade de morrer. Por isso eu havia fugido, mas nunca soubera se fora por medo de vir a amá-la ou se por medo de nunca vir a amá-la. Enfim, eu havia fugido e agora a reencontrava – eis a síntese do que deve ser dito.

Dentro do cinema, pairava um cheiro gelado, e talvez por isso eu a tenha beijado: para impedir que a umidade gelada entrasse dentro de mim. Rubi, como nas outras vezes em que eu a beijara, não usava batom. Quando inclinei o corpo na sua direção, ela apenas deixou a cabeça cair, sem peso, na direção de meu ombro. Parecia muito calma.

O apartamento em que agora Rubi vivia era dos mais simples: apenas cozinha, sala, banheiro e quarto, todos unidos por corredores estreitos, curtos, iluminados por pequenas lâmpadas que irradiavam um esfumado brilho vermelho. Um piso gelado recobria todos os cômodos, e, à medida que a luz violácea e cambiante sumia por entre as nuvens carregadas de chuva, eu percebia a umidade que se evolava das paredes e do chão. Havia também uma sacada; esta ficava diante de uma rua suburbana, e nas casas todas as famílias pareciam se preparar para o jantar. No céu, a escassa luz natural, ao misturar-se com a claridade amarela emanada pelos postes, tornava o entardecer pardacento e embotado. Garoava. Vindos de longe, chegavam amortecidos rumores das vozes que conversavam ao redor das mesas.

Sentei-me na cama e olhei para os pertences que Rubi guardava sobre a penteadeira: perfumes, pentes, talcos. Sobre uma secretaria, havia alguns livros e, talvez reminiscência da infância, uma girafa de pelúcia. Estremeci ao perceber a inutilidade de todos esses objetos. Era como estar na sala mortuária de um necrotério, observar os cadáveres sobre as macas, e não saber o que é mais horrível: a certeza de que tais corpos estão fora da vida, ou o irracional medo de que algum dos mortos erga um braço ou talvez irrompa em uma gargalhada. À medida que os minutos passavam, maior era a inércia: nada destroçava o silêncio, tudo permanecia em seu lugar, ora à espreita, ora em vigília.

Quando Rubi sentou-se ao meu lado, observei que o castanho dos seus olhos havia sido recoberto por uma membrana carmesim, de modo que agora assemelhavam-se a terra queimada pelo calor, terra dura e seca, que não pode frutificar, onde nascem apenas raízes mortas, e o som dos passos, quando se pisa uma terra tão árida, é um ruído seco e monótono. E o jeito de rir ainda se relevava perturbador. Rubi ria como se fosse uma garota de oito anos de idade, embora, para além da infância, houvesse um rancor sem remédio. Tenho idade bastante para morrer, já dizia Rubi antes de eu ter fugido pela primeira vez, como se tivesse a esperança de que alguém a salvasse. Mas Rubi nunca desejou ser salva, não durante o tempo em que estivemos juntos. Portanto, é irrelevante o que ela dizia. O que não me sairá da memória são os seus cheiros. Eu lhe beijava a boca sem batom – e às vezes era como beijar uma cicatriz – e, enquanto lhe despia, atentava para o modo como o seu corpo cheirava. Quando enfim a nudez se relevava, Rubi recendia a terra molhada, até o castanho dos seus olhos era povoado por nuvens de tempestade, como se o seu corpo e os seus olhos fossem uma região distante e selvagem, cuja extrema aridez conhece a chuva apenas uma ou duas vez por ano.

Como naquelas noites antes da primeira fuga, Rubi adormeceu com o corpo junto ao meu. Passados alguns minutos – com os músculos frouxos e com a consicência entorpecida por respirar o denso ar que se desprendia da mulher ao meu lado – também adormeci. No primeiro sonho que tive, eu caminhava por uma planície e, apesar do silêncio ao redor, não conseguia me desvencilhar da idéia de que algo muito ruim e violento acabara de acontecer. Então brumas ascenderam à consciência e, quando as imagens recuperaram a limpidez, eu soube-me cinco anos mais jovem, como se eu houvesse regressado no tempo e revivesse antigas noites; quando, deitado na cama, não percebia Rubi perto de mim. Escutava barulhos na cozinha. Caminhava até lá. Rubi vestia apenas uma camiseta que lhe desenhava os seios miúdos. Estava descalça e, ajoelhada, revirava a gaveta dos remédios. Onde estão os calmantes? – perguntava assim que percebia a minha presença, a voz furiosa e pétrea, de modo que eu pensava: uma planície avermelhada e batida pelo sol é sempre um lugar selvagem e maldito. E talvez por isso – por não ter forças para lutar contra algo que pretendia ser um chamado da própria natureza – dava-lhe os remédios. Ela ria(e ao rir trazia sombras de infância para os olhos e para a tristeza) e dizia Eu o amo porque você não se cansa de cuidar de mim. A seguir, enquanto as palavras ainda reverberavam, engolia os comprimidos e voltava para a cama, enquanto eu, parado na cozinha, dizia a mim mesmo que Rubi não acreditava nas palavras ditas por ela. Pois, por mais dolorosas ou belas que sejam, as palavras são sombras, e Rubi apenas acredita no que assume uma existência tangível. E talvez seja essa a sua desgraça; pois a ânsia que julga ter pela vida nunca poderá ser apenas uma vontade, não, essa ânsia se mostrará verdadeira apenas a partir do momento que se traduzir em atos, e as realizações nunca estão à altura do pensamento pelo motivo do homem nunca estar à altura da idéia que cria de si próprio.

Às vezes – e no sonho foi isso o que ocorreu – após ficar imóvel na cozinha por alguns minutos, eu seguia Rubi até o quarto. Deitava-me ao seu lado e observava como a sua respiração pesada era amainada pelo efeitos dos calmantes, como o seu corpo perdia a temperatura e tornava-mais rijo, respirando, agora, a intervalos mais longos. Imaginava o instante em que, no futuro, o sangue deixaria de queimar; o momento em que a rigidez seria tanta que o diafragma não mais se expandiria e não mais se retrairia; e então não seria mais possível beijar a boca sem batom, de um rosa pálido, e observar como a carne ganhava cheiro de terra encharcada e como os olhos era nublados por nuvens de tempestade. Era um pensamento tão doloroso por logo assumir a forma de augúrio; e julgava-me o mais doente dos homens quando, terno, pensava hoje ela quis ser tristeza, hoje ela conseguiu ser tristeza, e eu a ajudei. No instante seguinte, adormecia e o sonho que me subia à consciência também foi um dos sonhos que tive quando, ao reencontrá-la após cinco anos, dormi com o corpo dela junto ao meu: eu acordava sobressaltado; os temporais haviam cessado e o quarto se afundava no cheiro do sangue de Rubi; até as paredes, tão brancas, pareciam tem sido pintadas de escarlate; e a predominância do vermelho era tanta que eu sentia uma pressão crescente sobre as têmporas e a própria visão escurecia; então desmaiava, engolfado por um oceano cor de sangue, pois assim será o dia em que Rubi decidir ser morte e horror.