terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Blow Up

Pedro sofreu o acidente que o deixou coxo em dezembro, e a sua esposa, se me recordo bem, teve machucados ainda mais horríveis. Portanto o natal foi pouco comemorado: após uma ceia breve e saudações à meia-noite, todos foram dormir. Eu estava sem sono e pensei em pegar o carro e dar uma volta pela cidade, talvez ir até o Radio City.

Na tarde seguinte liguei para um amigo e combinamos de nos encontrar no salão de bilhar. Assim que iniciamos a disputa, começou a chover. Junto ao balcão, o homem que administrava o lugar jogava um estranho jogo de cartas com outro sujeito. Às vezes esse outro sujeito gritava. Perto deles, comendo de um prato que recendia a gordura antiga, estava sentada uma adolescente – rosto claro ungido pelo suor e pela gordura que se emanava da chapa de grelhar hambúrgueres, os seios salientes (talvez engordurados também) sob o fino tecido da blusa, cabelos à altura do pescoço. À medida que a chuva ficava mais forte, a madeira dos tacos tornava-se pegajosa e não conseguimos nos divertir. Antes do crepúsculo eu já tinha voltado para casa e, quando a noite se insinuou e parou de chover, veio, dos fundos do quintal, um cheiro de bananeiras molhadas.

Nos dias que se seguiram, eu e Cartago voltamos a perambular pela cidade velha. As lojas – após a alegria natalina – estavam todas fechadas. A prefeitura ainda não tinha dado início aos trabalhos de limpeza, e as ruas encontravam-se atulhadas de papel picado e jornais de propaganda. Chovia forte quase todas as tardes, mas depois vinha o sol, e ascendia um mormaço doente e preguiçoso. A impressão que se tinha era de que a água estava estagnada há não sei quantas semanas e por isso apodrecera.

Na última tarde do ano também vagamos pelo centro: primeiro uma caminhada pelas ruas quietas e ensolaradas (aqui e ali explodiam bombas, e ao mormaço fundia-se o cheiro de pólvora), depois algumas partidas no salão de bilhar e por fim uma visita ao shopping, que tinha todas as lojas fechadas e, na praça de alimentação, as cadeiras empilhadas. Era a última sessão de cinema do ano e havia poucas pessoas na sala de exibição. Sentámo-nos e, enquanto esperávamos o filme, vimos chegar um grupo formado por uma mulher e duas raparigas de quinze ou dezesseis anos. As meninas não pareciam ser irmãs ou primas – o tom da pele, a cor dos cabelos, os ossos do rosto, as sombras ao redor dos olhos, os gestos: nada indicava parentesco e o único aspecto que tinham em comum era uma magreza desengonçada (era como se o silêncio e a melancolia – uma tristeza apenas adivinhada, apenas imaginada – tornassem o ar mais espesso ou rarefeito; como se as duas meninas, ou melhor, como se os seus dois corpos magros ainda não estivessem acostumados a variações na densidade das horas).

Quando saímos do cinema e ganhamos a rua, o crepúsculo ia pela metade. Tinha sido uma tarde sem chuvas e um sopro quente varria os papéis e as copas das árvores. Bombas ainda explodiam aqui e ali (agora com mais frequência). Do alto dos postes descia uma luz que, misturada à poeira do entardecer, assumia um tom alaranjando, enquanto o céu poente oscilava entre matizes pálidos e de um azul muito escuro. Por quase uma quadra, a mulher e as meninas caminharam diante de nós, e durante todo o tempo tivemos a impressão (agora também em relação à mulher) de magreza destroçada, aniquilada. Era como olhar para o retrato de alguém – um retrato tirado durante um momento de introspecção – e adivinhar uma morte triste, talvez por suicídio.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Tribunal: Augusto

AUGUSTO


Se a Augusto, que nunca teve o hábito da leitura,
fosse incumbida a magna e dolorosa tarefa
de gravar nas portas de mármore do tribunal
(embora a sede do tribunal de nosso burgo
não seja mais do que uma creche abandonada)
o que é a justiça dos homens (afinal, Augusto
serviu esta casa por quarenta anos)
ele provavelmente olharia para o próprio coração
e apenas diria Por aqui ter entrado
aqui deixei toda a minha esperança.
Feito esse trabalho, uma sombra de silêncio
cairia sobre Augusto, que então evocaria
os seu idos dias enquanto diretor
e por que motivos mesquinhos perdeu o cargo:
deixou de mandar à incineração
os papéis que deveriam ser incinerados.
Por mais de um ano os processos
ficaram nos fundos do tribunal, expostos
à chuva e ao sol, exalando um nauseante cheiro
de bolor até que a sorte de Augusto foi selada
por um cadáver de rato ali encontrado.
Mas os ratos tomaram conta deste prédio
há décadas. Eles estão em todas as sombras -
ainda argumentou o pobre
à magistrada que lhe tirou o poder.
Isto, é verdade, aconteceu há muitos anos
e por muitos anos Augusto continuou a servir
à lei e aos magistrados.
Não havia sequer um dia que, magoado,
deixava de maldizer os ratos que haviam sido
a sua ruína. E assim ferido, Augusto,
continuava a perseguir as belas advogadas
e jovens prepostas que sequer conseguira ter
quando se julgava poderoso.
Estes os últimos dias de Augusto no tribunal
e se a ele fosse incumbida a tarefa
de dizer o que pode acontecer a um homem
teríamos então o mais próximo relato
do que Napoleão sofreu na ilha de Santa Helena.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Tribunal: dois poemas iniciais.

DOUTOR PAULO ABRANCHES




2011 não foi um bom ano para o Doutor Paulo Abranches.
Ainda em Março, a sua casa
foi invadida por homens armados.
Durante o seu depoimento, enquanto vítima,
o Doutor Abranches foi mil vezes mais eloquente e preciso
do que enquanto advogado.
Agosto veio, e um estio terrível
passou a lhe sufocar durante o sono
e ele então acordava e com os olhos
mal habituados às trevas mirava
as formas cambiantes que eram o corpo de sua velha mulher
e os móveis e as roupas ao redor, fantasmagóricos.
Esperava então pelo murmúrio, o calmo sussurro
da chuva fina que começa alta noite
e invade a manhã - brisa gotejante
a cair dos beirais dos telhados e do alto das árvores.
Em Outubro, às primeiras tempestades,
foi novamente vitimado por homens armados:
acertaram-no o intestino, mas o que o matou
foi a infecção que atacou os pulmões.
Naquelas noites, igual em Agosto,
acordava sufocado, com os olhos
que agora eram flores devolvidas pelas sombras
e escutava a fina chuva que caía lá fora
e sabia que já não apenas o desejo
havia o abandonado (tanta coisa
perde um homem antes de perder tudo).
No dia de seu funeral, como é comum
em nossa pequena cidade, um carro com alto-falantes
percorreu lento as ruas, reverberando um clarim fúnebre
e isto era, apenas isto era o dobrar dos sinos
por aqueles levados no barco de Caronte.
Após ecoar o áspero clarim, uma voz também áspera
informava que o Doutor Paulo Abranches estava morto
e que deixava uma mulher outrora bela.


DOUTOR JUSTINO


O Doutor Justino - melhor amigo do Doutor Abranches -
ficou de tal modo ferido pelo acontecido
que no dia seguinte à ida de seu companheiro às raízes
permitiu que um acusado a quem fora incubida a defesa
fosse condenado sem a observância do processo legal.
Na noite seguinte, a insônia que recaiu
sobre o Doutor Justino foi por ele próprio
reconhecida como vã e, no entanto, o que tanto pungia
o seu peito magoado?
Era o amigo morto
ou o ladrão mal defendido?
Levantou-se com a esperança de que um copo de conhaque
devolvesse o sono perdido.
Entre um gole e outro evocava
os ladrões crucificados ao lado de Cristo.
O Doutor Justino bem sabia, amargo,
que a história dos dias é a história
de homens que morrem por outros homens
e sequer um nome fica como erva.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Às Tangerinas

Manuel Bandeira dedicava a sua grande ternura
aos passarinhos mortos
e às meninas bonitas que se tornaram feias mulheres.
Eu oferto a minha ternura às tangerinas.
Este fruto de sabor mais do que ácido: ardente.
Esta fresca acidez feita para um dia de sol
mas que madura no inverno.
Basta dizer tangerinas que sinto uma luz vibrante
a me sair pela garganta.
Fruto que mais desejo quanto mais sede tenho
e o dia é reverberação da luz.
A minha grande ternura às tangerinas
porque me lembram um coração
há pouco ferido e há pouco consagrado
em tardes ungidas de amor.
A minha grande ternura às tangerinas
e a este trêmulo coração que entra na noite
e ainda palpita.