sexta-feira, 26 de março de 2010

Soneto 2

Um corpo caído é o grande exílio
do que ainda viceja. Cinzas, terra –
em tons rubros, a tarde cai e apela
ao que nunca houve, ao mais elíseos


bosques fecundados por olhos vítreos,
à inocência da nódoa na lapela
do traje com o qual o homem ingressa
à hora da qual não sairá: períneo


roído entre vestes roídas, órbitas
vazadas sob um céu vazado, jasmim
como alento último de canções mortas,


e a boca imóvel, pálido carmim,
nada pede, ou chora, ou exorta.
O que está caído alcançou o fim.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Soneto 1


À César o que é seu, e à menina
o que lhe é cativo: luz gentil
e murmúrios – uma ode pueril
para que lhe seja alheia toda a sina;

fado que ainda em céus de cartolina
se desenha: cruel, inverossímil
pois desgarrado do céu mais anil:
as paixões e as horas são assassinas.

Mas o fado de um, é o fado do outro
e também à César é essencial
tênues cantigas, e em cálice de ouro

beber o néctar da luz outonal,
ir ao léu, e a companhia de um tolo
é a que mais se lhe afigura ideal.

domingo, 14 de março de 2010

Poema

A CATEDRAL


“Amo a igreja – as imagens de seus querubins, seus
candelabros, suas alfaias de prata, seus
ícones, luminárias, púlpito, amo-os eu.”
Konstantinos Kaváfis

A catedral está fechada, mas olho-a.
Vejo-a como quem vê um mausoléu,
o gelado mármore que sepulta
os demônios de minha mãe.
E assim, soberba e fúnebre, a catedral
fere o coração da cidade.
Todavia acredito piamente
que a catedral seja um refúgio para o homem
e um sepulcro para os seus demônios.
Acredito tão piamente que desejo invadir esta casa
e orar e ajoelhar-me perante um deus
encoberto pelo frenesi dos dias.
Acredito e de súbito vejo os olhos de pietá
a dizer que todos os refúgios são efêmeros.

domingo, 7 de março de 2010

não é uma pena?

UMA MENINA NO FÓRUM E OUTRA MENINA NA RUA




É uma aldeia ínfima
e, todavia, a lei deve alcançar
o que é ínfimo assim:
as casas baixas, os rostos derruídos
por algo mais cruel do que o tempo
e mais cruel do que todas as quedas –
pois queda não há. Não aqui
onde o ar é transparência carmesim
onde o dia é a inútil permanência
da luz.


Aqui, beleza não foi criada
por homens ou pelo acaso: não há catedrais
e o arrebol de franjas róseas.
Não há a pujança dos trigais
após a terra cheirar a queimado.
Não há cerejeiras prestes
a serem cantadas e prestes
a serem vendidas.


Aqui, também o tribunal
é uma casa ínfima:
não há colunas de mármore
ou a deusa de olhos vazados
ou o latim gravado
nos portões de entrada –
"Deixai aqui, ó viajante,
toda a esperança".


O que existe, na aldeia,
são corações estragados
como pianos deixados ao sol
e às chuvas. Há tardes em que o vento
- sobretudo no falso limiar
do outono que nunca chega –
sopra sobre as teclas
e alguma melodia reverbera
e é como se fosse possível
o arrebol de franjas róseas
o louro ondular dos trigais
a doçura derradeira e inútil
de cerejas cantadas e depois vendidas
ou vendidas e depois cantadas.


Mas o vento cessa. O sol encrespa-se
e a beleza auguriada
não foi mais do que augúrio.
Não foi mais do que a vã
força de um dia que se verga:


Pelos corredores do fórum, uma menina
sente sumir o orvalho de seus olhos
e o seu corpo é cansaço e vontade.
Pelas esbraseadas ruas, uma menina
cheira a sol e cabelos crestados
e o seu corpo é pisoteado pelas cabras
até se tornar inútil para a colheita.

terça-feira, 2 de março de 2010

consciência

SUAVE


Suave é o momento do sono:
entra em meus olhos e desabrocha
revelando mil pétalas negras
e sob as negras sombras das pétalas
repousam mil pedaços de mim,
repousam sem peso e contudo presos,
como raízes revolvidas na úmida terra,
raízes que ainda não cresceram.


DESMAIAM


Desmaiam os desejos e a vontade
e sufocados os pensamentos murmuram
como um rio em uma tarde de calor.
Nas margens as frondosas árvores
agitam-se como pássaros mudos
pois também os pássaros estão em silêncio.
Onde a sombra não bate a relva é seca
e triste ignora o lento fluir do rio:
a vida é maior que este pedaço de mundo.
Dos homens não há vestígios -
a tarde é eterna e a morte distante como o luar,
apenas os pensamentos eclodem, sólidos
como em uma inaudita tarde de calor.