domingo, 29 de março de 2009

Poema

É jovem a terra: presenteemos
um ao outro com aquilo que é mais
finito: beijos, carne que se rasga,
passeios pela cidade que deixa
de nos pertencer, talvez o desterro
em brancos balneários ou até
a ternura por pássaros e ocasos.

Não ignoro: tudo findará
apesar de eu pouco pensar no fim.
Ainda é o começo, e não há
alegria maior que começar:
saber do lume que enlevadas mãos
incendeiam, de um corpo desbravar
a sua primeira vitalidade,
em um coração residir e nele
descobrir uma falhada inocência.

Mas é o começo, e no começo
em dádiva é possível transmudar
a mais bela, a mais frágil finitude.

domingo, 22 de março de 2009

Poema

A tarde começou seca, inóspita.
O céu, em tons de ardósia, era um bloco
de gelo sujo que lá na lonjura
em vapores vermelhos esvaía-se;
e os ventos, ao trazerem tais vapores
às ruas, sobre as ruas espalharam
essências de cinza, sangue e motores.

Depois, antes ainda do crepúsculo,
este céu foi cruzado por relâmpagos:
baixas nuvens romperam sobre as ruas,
ecos tonitruantes, luz corrupta
e por fim caiu a chuva, mas não
um temporal – apenas uma chuva
de pingos grossos, gelados, a qual
rolou rios de lama sobre as sarjetas.
Nos postes tremeluziram as luzes.
O que era opaco e branco conseguiu
tons violáceos, e eu, inerte sob
uma marquise, a olhar a sujeira,
pensei na miúda que antes da chuva
por mim passara com seus olhos claros
e a pele clara e um fulgor igual
ao das magras musas feitas de luz
que se esbateram e depois sumiram.
Não recordo os seus rostos mas recordo
que há poucos anos ainda viviam
e procuro o que mudou desde então.
Igual a cidade, igual a carne
aos anos em que a morte, de tão pálida,
não passava de pálido terror.

O que talvez mudou, pensei comigo,
é que para as raízes perdi corpo
mais do que amado: santo – e santo é
apenas por ter sido maculado
pela terra que depois o roeu.
E outro corpo, este luz e pujança,
amei apenas para descobrir
que ainda durante a febre da carne
a carne pode fugir das mãos nuas.

O resto são dias que se repetem
como se outros dias não existissem:
tardes chuvosas e horas lamacentas
findam o calor; dias cristalinos
de maio a julho, até que em agosto
sopram mais fortes os ventos do estio
e o que renasce soma-se aos augúrios
de que tudo voltará a morrer –
céu branco substitui o arrebol
e as brumas púrpuras do entardecer
coagulam-se e mudam-se na noite
e em astros de brilho gordo, argênteo.
Como partir? Como fechar os olhos
e do abrigo das estrelas fugir?
Como abandonar os dias iguais
se iguais os dias alegres e igual
o medo de a palavra esperdiçar
(a palavra como sentido nunca
achado; como sentimento nunca
sentido; a palavra como afeto
mudo; a palavra que fora daqui
será mais do que oca: inexistente)?

domingo, 15 de março de 2009

Poema

POUCO A POUCO, OS DIAS DE CALOR

Pouco a pouco, os dias de calor
mudam-se em horas de irisada luz
enquanto aqui, neste quarto de estudos,
a morta infância parece afogada
em águas claras e lisas– as quais
não escavam os seixos mais profundos.

Quereria eu, em bonito dia,
da carne caduca alcançar a fuga
para a carne pueril visitar.
Com esse corpo, à praça central
iria – perto das flores do estio
e dos mascates da falência próximos –
e lá escapar do exílio que à mente
e ao coração isolou; regressar
às tardes mais do que suaves: fáceis,
e às moças mais do que fáceis: entregues
à febre que por esplendor se toma.
Esplendor o qual, como o orvalho queima
a frágil relva, machuca os seus rostos
na hora que a luz parece perene
embora morra: crepúsculo claro
e veloz – crepúsculo feito sonho
no qual a dor não é dor, e o cair
não é cair, e o tempo não é tempo
(assim inscientes vamos ao Hades,
assim cegos pela primeira vez
a estiolada luz nos vaza os olhos,
assim ignorantes esquecemos
as palavras tolas e os deuses tolos).

Nada a fazer contra esse entardecer.
Embora branda, a tarde lá fora
é a tarde de agora, pois a noite
que virá depois, mesmo constelada,
é a profunda noite da velhice.
E a praça central, embora concreta,
não é a praça central: é apenas
um lugar triste, algo como um túmulo
ou um nome de morto que também
é o nome de um vizinho – um homem
calado mas gentil, familiar
mas estrangeiro: apenas a sombra,
a estranha sombra do que não existe.

domingo, 8 de março de 2009

Poema

MAIS VELHO DO QUE TELÊMACO

Estar aqui, na casa paterna,
entre os animais e o pomar
cujos frutos, colhidos pelo dia, apodrecem
sobre a terra, à sombra da infância.

Por mais quantos anos isso durará?
Percebo que fiquei tempo demasiado
e que se exilar desses jardins e dessas noites
seria o início da morte.

Assim não seria se jovem
- com a idade de Telêmaco, talvez -
eu fosse visitado por Palas
e com a sua empresa tivesse
ido para longe de Ítaca.

Mas essa deusa de olhos glaucos, se existe,
é a fulgurante vigília das estrelas
que ardem nas noites límpidas e quietas:
trazido pelo vento, não chega
o marulhar das ondas contra as pedras.
Tudo o que ouço – sozinho nos fundos
da casa, perto da piscina –
é o que ouço desde menino:
morcegos que agitam as asas
e a faiscante trajetória dos vagalumes
e os gatos que andam sobre as folhas secas
e o frêmito que chega da cidade
e outro murmúrio, este tão misterioso
que ora penso ser o chispar dos astros próximos
e ora penso ser o lamento da vida
que de mim se evade.

E tudo é tão familiar: sei de onde virá o sol
e com que sutilezas uma estação ingressará na outra.
Portanto, se tudo é como na infância,
por que há noites em que a alegria verte-se em dor?
Por que um anseio por outro céu e outra casa
se a casa que habito e o céu que contemplo
é o que mais temo perder?
E por que desejo que as estrelas
sejam de fato a deusa dos olhos glaucos?

Se fecho os olhos, até imagino como ela
viria até mim, que decisivas palavras diria
e como depois, mudada em faiscante vagalume,
retornaria ao céu estrelado.
Eu ainda não escutaria, ao longe,
as ondas que rebentam contra as pedras,
mas talvez deixasse de temer
o crescente eco que de mim se acerca.

domingo, 1 de março de 2009

Espólio do antigo computador - Conto: Documentário

Os olhos dele eram azuis, assim como os dela. Quem observava a ambos, pai e filha, não pensava que pudesse ser adotada: um bebê vindo do sul com apenas quatro meses de idade, subnutrido, olhar muito triste, rosto pálido, com poucos cabelos ruivos cobrindo a cabeça. O homem tinha trinta anos; a esposa era mais jovem, contava vinte e seis. Ele era médico, cuidava de crianças, embora na faculdade tivesse sonhado ser oftamologista.

Os olhos eram azuis, mas agora ele está morto e ela está diante de um homem de olhos e cabelos negros. O que devo dizer? O riso é encabulado, as pessoas costumam ficar tímidas quando filmadas. Fale sobre aquela sua teoria. Qual teoria? A que diz que as pessoas têm mais virtudes do que defeitos. Fale para a câmera, por favor. Não é teoria, é apenas uma opinião. Mas fale. Eu acho que as pessoas têm mais virtudes do que defeitos: se você conhece uma pessoa, pode ser o mais cruel assassino, vai conhecer as suas qualidades e vai nascer o sentimento de afeto. É isso que devo dizer? É, é isso mesmo, as pessoas têm mais virtudes do que defeitos. Desliga a câmera.

Sempre o chamou de pai, mesmo durante toda a confusão, aqueles meses dominados pela loucura e pelo ódio. Ele estava num esquife na última vez que o viu. A sala onde aconteceu o velório fedia; cheiro de cigarros, de café requentado, de flores maceradas, de comentários graves. Aproximou-se com passos lentos, com medo da magra figura coberta por lençóis brancos. As únicas partes do corpo descobertas eram as mãos, cruzadas sobre o peito, e o rosto pálido e chupado. Apresentava a morbidez típica dos suicidas. A sala fedia, cheiro de cigarros, de ódio também - ódio, espanto e culpa. Foi durante uma tarde de muito calor. Antes de sair para o funeral, quis almoçar, mas estava sem apetite. Apenas ficou na cozinha, em silêncio, com os cotovelos apoiados sobre a mesa de mármore, olhando as samambaias que eram queimadas pelo sol do meio-dia. No decorrer da cerimônia as pessoas começaram a transpirar. Tornou-se irrespirável o cheiro de flores para defunto, um cheiro doce, muito doce. Sobre o rosto do pai pousaram algumas moscas. Quis espantá-las, mas não conseguiu.

O homem de olhos negros a observa. É um amigo, embora saiba que ele está apaixonado por ela. Quem vai ouvir agora? Não sei. No céu amontoam-se nuvens de chuva e o vento que percorre a cidade uiva ao bater contra a janela. Poderia chover, é bom pra dormir. O homem de olhos negros a observa. Ela mantém os olhos baixos, melancólicos. Tem vontade de filmar a sua primeira lembrança. Foi numa fazenda. Lembra-se da sombra do pai projetada sobre a terra batida, avermelhada. A sombra do pai caminhava ao lado da sua e ela, ao caminhar, dava passos cada vez mais largos, na tentativa de pisar os joelhos da própria sombra projetada no chão. O sol era tênue. Pararam diante de um viveiro enorme, habitado por coelhos (no viveiro ao lado galinhas faziam um barulho estridente e seco). Respirava-se o cheiro de água suja. O pai pegou um coelho, o menor de todos, e deu para que ela o segurasse. Os olhos do coelho estavam cheios de pavor. Ela ficou imóvel, segurando o animal com as duas mãos, sentindo o coração do coelho bater cada vez mais acelerado, como um pequeno tambor. Tuctuctuc: o som era amortecido pelas camadas de tecidos e músculos, não deixava qualquer eco. Ela também estava apavorada. O pai ria.

Foi pela manhã que os policiais vieram, tão subitamente que o pai parecia ser inocente. Considerou que talvez o filme devesse começar com o som peremptório das batidas na porta, com o rosto do pai assustado, a barba por fazer, os olhos azuis, a expressão de rato acossado contra a parede. Graças à Deus, sua mãe está morta, disse a avó, e ela nunca soube se este foi o seu último comentário lúcido ou o primeiro sinal da demência. Por que Graças à Deus? - pensa todas as vezes que olha a avó. Acha estranho ter sido tirada de uma família que nunca conheceu para ser colocada numa família maldita, para ser muito mimada na infância e violentada na adolescência. A mãe está morta, o pai também. Graças à Deus por quê? Tem vontade de ligar a câmera e perguntar. Somente a avó ainda resta, a avó quase cega, com os olhos cobertos por uma membrana esgazeada (olhos idiotas, ruminantes), com a boca sempre nojenta, a pele mal cheirosa, marcada por sulcos profundos e secos, como se o câncer que a devora tivesse deixado de existir, deixando-a em ruínas, como se a avó tivesse ficado velha apenas para se cagar e para não reconhecer a suposta neta.

Chega uma hora em que o cansaço quebra o seu espírito, é que há muitos filhos da puta no mundo. E esses filhos da puta, quando apanhados, transformam-se em cordeiros de olhos assustados e inocentes. É horrível olhar para um homem e saber que ele é culpado: você quer matá-lo, é um ódio que nasce aqui dentro (aponta o próprio peito) e depois que você começa não consegue parar. É horrível saber que o seu coração vai se encher de maldade a partir do momento em que você começar a torturá-lo, porque é horrível machucar um homem, mesmo o mais culpado, é horrível chutar o rosto de um homem e ouvir os barulhos dos dentes se quebrando, é horrível, horrível.

Desliga a tevê, cansada do depoimento do policial. Silêncio. O clarão de um relâmpago ilumina o quarto. Fecha os olhos e espera: o trovão demora cerca de sete segundos para ecoar. A chuva aumenta. No quarto escuro o cheiro de terra molhada soma-se ao cheiro do incenso e ao cheiro da avó, que dorme no cômodo ao lado. Vêm a vontade de dormir e a saudade do antigo nome, que murmura como se chamasse alguém. Depois fica atônita, sem entender por que motivos sente saudades de se chamar Muriel. Acho que é porque estou ficando velha, conclui, virando-se de lado e puxando as cobertas até quase cobrir o rosto. A chuva deixa de ser ouvida, mas permanece o cheiro de terra molhada. Acho que é porque estou ficando velha, a frase ecoa no quarto escuro, tão absurda quanto antes. Fecha os olhos e fica muito quieta, como se quisesse ouvir o próprio coração bombeando o sangue cuja origem lhe é estranha.

O avô também tinha olhos azuis, a família sempre foi pura, próspera. Das sombras da vigília emerge, com perturbadora nitidez, o retrato afixado na parede. São três as pessoas fotografadas: o pai ainda criança, a avó e o avô. Os três com os olhos fixos na câmera, como se soubessem que se tornariam fantasmas. Pensa demoradamente no avô, que nunca conheceu, um homem que todos dizem ter sido severo e justo. Pensa depois na avó, ao ouvir a pesada respiração no cômodo ao lado. Por fim pensa no pai, como se a sua alma ainda estivesse no quarto, à espreita, esperando que ela adormecesse. A alma é uma grande mentira, pondera, entre o sonambulismo e a vigília. A alma não existe, o que existe é a culpa que a morte não pode expiar – a culpa e o cansaço e um ódio que as pessoas não levam quando morrem; um cansaço e uma culpa e um ódio que ficam por aí, até serem herdados por alguém.

Eu acho que as pessoas têm mais qualidades do que defeitos. Se você conhece uma pessoa, pode ser o mais cruel assassino, vai conhecer as suas qualidades e vai nascer o sentimento de afeto. Na tevê, o homem de olhos negros também é um fantasma otimista, por isso é perturbador ouvi-lo. Ele fala sobre conhecer os homens e se esquece do real objetivo do filme: transformar em quebra-cabeças uma história que a realizadora conhece muito bem, como se a compaixão fosse apenas nascer dos pensamentos mais precários e dispersos, como se o perdão só pudesse decorrer da impossibilidade de compreender um homem, seus atos, seus crimes, sua miséria, seus pecados. Considera que talvez o filme devesse começar no funeral do pai: o corpo esquálido e franzino afundado no caixão enorme, os lençóis brancos, descobertas apenas as mãos e o rosto pálido, o cheiro de café, cigarros, flores para defunto, o calor lancinante, as manchas de suor nas camisas dos homens, a perversidade e a hipocrisia dos comentários graves, a culpa que a morte não pode expiar, o cansaço, o zunir dos mosquitos que pousam sobre o rosto do pai morto, ela tentando espantá-los e falhando.

É mais fácil adormecer com o quarto iluminado pelo brilho da tevê, enquanto ouve o homem de olhos negros; o homem que fala sobre perdoar e aceitar como se fosse a reencarnação do próprio Cristo. A decadência de uma família de boa fortuna, the rise and the fall, é assim que entenderão o filme, mas prosperidade e decadência são idéias idiotas, sem o menor sentido. No quarto ao lado, a avó ressona; o cheiro de terra molhada vai se diluindo, ou talvez seja o sono chegando. Então uma família é decadente por que o pai é um estuprador e a avó, uma demente que vive nas sombras, fedendo a bosta e a mijo? Então a casa vizinha é afortunada por que na hora do jantar todas as luzes estão acesas e ouvem-se os risos das crianças? Tudo é absurdo e sem o menor sentido, alegria e dor acontecem de modo totalmente imprevisto, como um trovão reverberando na tarde quente. O filme deve mesmo começar com o peremptório som das batidas na porta. Finalmente adormece e sonha com o pai debruçado e ofegante sobre seu corpo. O pai fede a bosta e a mijo, como a avó, que tudo consente, no limiar da loucura, e diz Graças à Deus a mãe está morta.

Os olhos dele eram azuis e os olhos desta outra são negros. A pele é muito clara e os cabelos são castanhos, lisos e longos, com a franja caindo sobre a metade direita do rosto, o que confere ao seu semblante uma inesperada doçura. Chove pela terceira manhã consecutiva e, para além da janela cujos vidros estão embaçados pela umidade, a cidade é um tumulto de sons e lama. O riacho transbordou e alagou as ruas que separam o centro dos outros bairros. A sala recende a incenso, a maneira encontrada para mascarar o forte cheiro de esgoto. A sala é um cômodo pequeno, muito bem decorado, com uma mesa ornada por flores brancas e roxas.

Eu sinto que ainda não fui resgatada. A mulher olha para o canto da sala em que está o piano, mas os seus negros olhos parecem vazados. Ambas têm a mesma idade, a mesma beleza pálida e fugaz. Eu ainda sinto o seu pai dentro de mim e tenho ódio de meu corpo, ódio de respirar, ódio de ouvir o coração pulsando e mantendo vivo o que o seu pai deixou dentro de mim. Por isso o piano. Um dia desejei tocar como quem respira, estar limpa por dentro, mas não consigo, simplesmente não consigo, o seu pai ficará sempre vivo dentro de mim – e eu odeio o meu corpo mas não odeio quem o destruiu pelo simples motivo do ódio não dar conta de todo horror e espanto. A mulher de olhos vazados fica em silêncio A branca luz filtrada pela janela, ao incidir oblíqua sobre o seu corpo, dá ao rosto uma natureza diáfana, talvez etérea. Gostaria de ir para muito longe. Gostaria de ter nascido em outro lugar, um lugar muito longe daqui. Gostaria de ter nascido longe do seu pai, mas não consigo partir, sempre vou carregar o que foi posto dentro de mim, sinto-me grávida de alguma coisa maldita, não posso partir, odeio o meu corpo e apenas sinto saudades (um sentimento constante, vago, indefinido, como o sonho de outra pessoa) de um lugar muito distante. O silêncio retorna, o perfume do incenso absorve o cheiro do esgoto. A documentarista estremece de medo, contempla a mulher de olhos vazados como uma aquarela em contraste com a manhã branca e chuvosa. Mas sabe que não será sempre assim, sabe que em casa, quando voltar ao depoimento dado, estará diante de um fantasma, e nada é mais triste do que ver a mulher mais linda da cidade transformada em fantasma.

Muriel, o meu nome era Muriel, diz a documentarista. A mulher de olhos vazados vai até a janela e escreve as letras do alfabeto no vidro embaçado pela chuva. Eu preferiria não ter um nome, não sei o que Sara significa. É um nome lindo, dizem, mas talvez seja como um túmulo de mármore; algo com a função única de evitar que os vermes devorem os mortos sob a luz do sol, ou talvez seja um enigma, como uma palavra dita em língua estranha. É assim que ouço o meu nome ecoar, quando me chamam: como uma palavra dita em língua estranha. O que significa ser Muriel? O que significa saber que o seu pai é um monstro? O que significa toda a dor do mundo? As mulheres se olham em silêncio, até que a documentarista se vira e sai do apartamento. Liga o carro e não vai além da primeira esquina. As águas revoltas do riacho a cercam. O barulho da chuva caindo sobre o veículo é uma canção monótona, que provoca o sono. Os vidros começam a embaçar e a água penetra, água suja, provavelmente contaminada pelos excrementos dos ratos. Sente o carro perdendo o peso, começando a rodar muito lentamente, sendo levado pela correnteza, até que um baque interrompe o movimento, devolvendo o veículo ao estado de inércia. Nas ruas alagadas, como manchas imóveis, as pessoas observam o carro. Ela evoca a primeira lembrança da infância. O coelho em suas mãos. Fecha os olhos, escuta novamente o tuctuctuc cada vez mais apavorado, mas não sabe se é o som do próprio coração ou se é o coração do coelho. As pessoas começam a jogar cordas para tentar salva-la. Ela lembra-se do medo que sentiu ao segurar o coelho e de como o pai ria como se fosse inocente. Mas agora ele está morto. Ela sente saudades e mais uma vez se lembra da tarde em que segurou um coelho apavorado. Considera que assim deveria começar o filme: com o som das batidas de um coração, de qualquer coração, simbolizando que há certas culpas que a morte não pode lavar.