sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

poema

QUASE POEMA NATALINO


A cidade, ontem cheia de gente,
está quieta agora – o céu é branco
e também parece entregue ao torpor
de quem muito comeu, sentiu, buscou
e agora encontra dor por existir.
Também são pesadas as horas – monstros
de bojudos estômagos, de passos
lentos, gordurosos, sem outro sentido
além o de caminhar com lerdeza
e peso, sem outro sentido além
o de caminhar para as muitas tardes
onde muito se come e onde muito
se busca: vindouras tardes de céu
branco; céu onde cristo jaz ausente;
céu em cujo coração (tão secreto
e rubro) perduram amor e medo.

domingo, 22 de novembro de 2009

poema

BREVE PENSAMENTO SOBRE ENVELHECER


Talvez a velhice seja a idade
na qual somem todos os privilégios.
A beleza ainda existe, mas agora
é chaga que se abre no coração –
e o sangue que sai, de um vemelho opaco,
é memória confusa e amedrontada
é o repetir de uma melodia
que a cada hora mais se torna estranha
(como se entoada num dialeto
agora alienígena, mas que antes
vibrou como língua por demais bárbara
ou por demais clara: o verbo antes
da sombra do inexpresso; o amor antes
do medo de nada valer; e a luz
antes de descobrir que é fecundada
por olhos mortais, por corpos exaustos,
por estrela antiga e já agonizante).

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

início de um conto

"É como retornar a uma corrompida idéia de alegria" - pensou Antoine, quando a estrada começou a descer e a cidade surgiu, baixa e fumegante, espalhada por toda a linha do horizonte. Acima do carro, o céu era de um azul mais do que esmaecido: era um azul ameaçado pelas nuvens que, de tão maciças, pareciam contrariar todas as leis naturais (as nuvens mais próximas eram ofuscantes como mármore refletindo o sol, e as mais longínquas assumiam uma tonalidade fosca, um matiz que lembrava enferrujadas carcaças de metal em pátios abandonados). Dentro do carro, e porque todas as janelas estavam abertas, o vento que entrava era um sopro incandescente e selvagem contra os rostos e os cabelos de todos os que viajavam: o já mencionado Antoine, homem de trinta anos de idade, magro, dentes arreganhados contra a luz e os ventos, de modo que o seu semblante era uma careta que parecia soma de espasmos musculares tidos durante algum pesadelo tão intenso quanto vago; uma mulher de esvoaçantes cabelos loiros, óculos de lente escura, rosto ungido por fina e reluzente camada de suor, e uma camiseta que deixava à mostra os ombros claros, ossudos, e, ainda assim, sensuais na exata medida em que preservavam sinais de uma juventude para sempre ultrapassada; e, no banco de trás do veículo, adormecida, uma criança de seis ou sete meses de idade, cabelos de um castanho claro que, de tão finos, não eram mais do que uma penugem, e a pele lambuzada por branco e perfumado protetor solar.

Algumas centenas de metro adiante o sol se escondeu por trás das nuvens cor de chumbo e o que caiu, sobre a estrada, foi uma sombra também plúmbea, a qual tornava mais forte o cheiro dos canaviais queimados – um cheiro que, somado ao calor, transcendia o seu estado gasoso, dando origem a um mormaço tão úmido quanto sólido.

"Então é aqui?" – a voz da mulher soou como se fosse mais uma manifestação do vento e do calor, pois os sons sumiram logo a seguir, sem deixar eco, algo como o fantasmagórico ruído de uma peça de madeira estalando durante a noite.

"Sim, é aqui" – respondeu Antoine, que, talvez por descuido ou talvez por encantamento, permaneceu com a boca semi-aberta após a formular a resposta: agora, mais do que nunca, tinha os dentes arreganhados contra a luz e os ventos; os olhos, em contrapartida, estavam cerrados como se ele quisesse fitar, na linha do horizonte, uma distância impossível de ser alcançada por olhos humanos. Pela primeira vez no dia, havia alguma doçura no cheiro dos canaviais queimados – e este olor tão doce e enjoativo, à medida que se aproximava o crepúsculo, apenas aumentaria e depois, como se tivesse atingido o esgotamento, sumiria; deixando, na noite, o ardente perfume de mato, flores selvagens, animais despertos e ariscos. Enquanto tudo isso acontecia, dentro do carro, o cheiro mais forte passou a ser o de carne cansada, indefesa. Antoine olhou para o lado. Olhou para a esposa que, pela primeira vez durante a viagem, tirava os óculos de lente escura. Ela tinha o rosto ungido pelo suor e queimado pelo sol que, durante a tarde inteira, caíra sobre o carro. Apenas ao redor dos olhos a pele mantinha-se clara, de uma brancura que, Antoine sabia, simbolizava uma impossível pureza (e, no centro dessa impossível pureza, tremeluziam dois olhos claros e assustados). Antoine, enlevado, quis beijar a fronte da mulher: em vez disse, apenas sorriu, ou seja, tentou conferir alguma ternura aos seus dentes arreganhados.

"Sim, é aqui" – repetiu após o sorriso, a voz quase inaudível. A seguir, olhou para a mulher e depois para a criança adormecida. "É a minha família", pensou, e lembrou-se de alegres tardes junto com os pais, alegres tardes vividas na cidade a que retornava. E lembrar dessa alegria o deixou melancólico, como se toda a alegria o lembrasse de algo que nunca deveria ser lembrado, algo que nunca deveria ser uma verdade.

sábado, 14 de novembro de 2009

poema

A noite antes do dia dos mortos
começa cruel: o ar é chicote
de silêncio, tédio, raiva, tristeza;
como se o que é vazio e ausente
elétrico se tornasse, e assim
impulsionasse as pessoas e os carros
em muitos passeios pela cidade –
corpos que se esgotam em catedrais,
ou em parcos banquetes, ou em buscas
pelo que também respira, e queima,
e pranteia, e perverte, e adora,
e delira ante a falhada pureza
que nos pântanos de outros corações
encontra, como se o estrelado céu
também conseguisse existir em tudo
o que o imita: luzes da cidade,
olhos enamorados, mar sem ondas
e em cujas águas adejam vestígios
de alegria náufraga e irreal.

A noite antes do dia dos mortos
magoa apenas os mortos futuros.
Os mortos em cujo sangue cintila
muito mais do que amor: medo, e muito
mais do que medo: urgência, pulsão,
o desejo de ter os pés na terra
e não cair: estar aqui, estar
entre o que imita a beleza, e o amor,
e a coragem, e o que parece eterno –
claro rosto de deus, rubra linhagem;
a carne que deixa de ser poeira
ao frutificar, ao tirar do sangue
outros mortos futuros, outros cérebros
rachados entre o ser mortal e o ser
imitação de um júbilo perene,
de um rosto bondoso e nunca encontrado,
de pai forte e filho mais forte ainda.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

mildred foi mesmo embora

ÚLTIMO POEMA PARA A TRISTEZA DE MILDRED

Como dizer que a sua tristeza
é o poema que desejo escrever?
Até sobre a sua alegria sei pouco.
Eu só a conheço debaixo do sol:
não sei se os seus olhos, castanhos,
continuam castanhos quando chove
ou se escurecem como os olhos
de uma mulher que amei certa vez.
Também nunca a vi dormindo;
não sei como a primeira luz da manhã
desliza sobre o seu rosto
e também não sei se essa mesma luz
faz o castanho dos seus olhos
brilhar como mel refletindo o sol.
Tampouco sei o gosto de seus beijos
e nunca ouvi as canções que você ouve
quando se descobre enamorada.
Conheço apenas o seu riso
e como o sol, no rigor do meio-dia,
enrodilha-se em seus cabelos ruivos.
Uma vez você disse estar triste
mas a tristeza me pareceu timidez
e tímido eu não soube ir além
de seus olhos, seu pudor, sua tristeza.
Tampouco sei o que é amar
durante o tênue mês de maio.
Foi em novembro que tive
aquela guria cujo azul dos olhos
se acizentava nas tardes de chuva.
Após ela pensei que você seria a mulher
que um homem tem após aprender
a amar e a perder o que ama.
Mas tão distantes nos mantivemos
e no entanto ainda há um resto de luz:
com essa luz invento a sua tristeza
(contempla a minha inútil ternura!)
e sob essa luz (luz que predece o inverno)
vou percebendo qual é a chaga de sentir
dentro do próprio peito um fruto
maduro e ainda não colhido.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

por onde anda mildred?

PRIMEIRO POEMA PARA O SORRISO DE MILDRED

Como dizer que amo
o sol que arde atrás do seu rosto?
Não a conheço. Nada sei
sobre a sua tristeza,
sobre o seu coração magoado,
sobre os mortos que enterrou
e os corpos que não pode mais amar.
Olho-a e sei apenas de mim:
amei e fui amado
por mulheres imensamente tristes;
eu as abracei e o que ofereci
foi a minha fraqueza.
Agora sei que sou apenas um homem
e se a vejo, sei que é apenas uma mulher
mas também sei do sol,
do seu modo de rir, da sua juventude,
das flores que gosta de colher
e que para o seu coração tão indefeso
amar um corpo ou amar uma alma
traz a mesma alegria.
Por isso a quero,
porque o seu rosto é o sol,
porque a sua alma é um véu de luz,
porque o seu corpo é uma orquídea que se abre
e depois adormece ao relento.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

poema

As manhãs de forte luz
não são para os corpos gastos;
os corpos batidos pelo
o que existe de mais ínfimo:
coração podre – um seixo
pela maré devolvido
ao areal, pedra inóspita,
pedra de nudez selvagem
como os olhos de uma fera.

As manhãs de forte luz
são alheias às vertigens
do real. Fumega o céu:
é um azul entre o plúmbeo
e o anil – azul erigido
sobre telhados vermelhos
sobre ventos de terra
sobre carne e olhos ardentes
e que ainda nesse dia
(ainda o azul, o ardor)
serão desejo e silêncio.

As manhãs de forte luz
são a morte do divino:
deus é uma palavra oca,
o amor é sono e febre
em corpos que se limitam
em beijos que se repetem
em corações que existem
apenas para o que não
existe – lume diáfano
e que, todavia, queima
como se fosse limpar
impuros corpos, impura
luz, impuro declinar
às horas mais viciosas.

As manhãs de forte luz
existem para o que irá
morrer e isso desconhece:
rosas com gosto de orvalho
carne com cheiro de infância.
O resto, em tais manhãs,
agoniza, ou boceja,
ou recebe com raivosa
tolerância as chagas
do inevitável exílio.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

nouvelle vague

Margot esteve muito triste nos últimos dias de agosto, mas em setembro veio o esplendor.

Não sei se (re) nasceu em nós a vagabundagem juvenil, não sei se foi o abandono que sempre surge no encalço da tristeza, ou se foi a ternura pelas coisas vivas. Perdemos muitas tardes perambulando pela cidade. Não tínhamos dinheiro, mas tínhamos um plano de vida comum: ela desenhara a planta do nosso futuro apartamento e íamos de comércio em comércio, conversávamos com os vendedores, pesquisávamos preços, escolhíamos móveis que nunca poderíamos comprar.

Mas isso não foi o principal daqueles dias. Sabíamos que em nosso apartamento haveria um coelho e naquela semana chegamos a visitar todas as lojas de animais da cidade. Os coelhos mais bonitos não estavam nas lojas chiques e perfumadas – os que mais nos agradavam eram os coelhos daquelas lojas de bairro, os quais ficavam apertados em gaiolas minúsculas e eram vendidos para abate.

Às vezes Margot julgava um coelho mais bonito do que os outros e, com desespero na voz, dizia:
“Mas as pessoas vão comer ele.”

Em outras ocasiões ela cismava que um dos coelhos estava fraco e alertava o vendedor:
"Aquele coelho não está conseguindo beber água.”

A nossa jornada terminou na loja de animais do Mercado Municipal, onde vimos o mais bonito dos coelhos: branco, pequeno, sem manchas no pêlo, e em cujos olhos vicejantes pulsava uma infinita vitalidade. Na gaiola ao lado havia cerca de vinte coelhos, e um deles, branco e cinza, também bonito, quase não se mexia. Margot chamou a vendedora: “Aquele coelho ali não se mexe.”

A vendedora observou por alguns segundos: “É que ele está morrendo."

Margot nada respondeu. Apenas observou a vendedora abrir a gaiola. Os outros coelhos, que começavam a fustigar o companheiro agonizante, afastaram-se. Rápida, a mulher o apanhou pelas orelhas – o que fez com ele soltasse um espasmo e depois silenciasse – e, corredores da loja adentro, sumiu com o animal morto.

domingo, 11 de outubro de 2009

duas anotações sobre o calor

1.

Lembro-me dos dias em que escrevia poemas e dos sábados em que descia às ruas do centro e gastava as as tardes jogando sinuca. Voltava para casa às sete ou oito horas da noite. Como era março - e como naquele ano o verão ficou marcado pela ausência de chuvas - eu caminhava sob um entardecer incendiado. No ar poeirento e com um cheiro de sol antigo e terra queimada, à medida que cruzava os quarteirões da cidade velha, um fedor de gordura podre ganhava o meu rosto. Passava muitas noites de sábado em casa e escrevia sobre isso: a agonia das samambaias no tempo seco. Às vezes ouvia Trio Los Panchos ou Leonard Cohen.

2.

Nunca soube o motivo do Senhor Hambúrguer ficar aberto durante a noite: havia poucos clientes e eles só atendiam a jovens sem dinheiro como eu e Cartago. Recordo que, em uma noite de sexta, eu e Cartago jantávamos antes de seguirmos para o cinema da Rua Etrusca. No Senhor Hambúrguer, todas as outras mesas estavam vazias e a luz que descia - uma claridade branca e onipresente, a qual não permitia que qualquer recanto do estabelecimento se ocultasse nas sombras - era, a um só tempo, doce e alheia.

Após o jantar, andamos os poucos quarteirões que separavam a lanchonete do cinema. No caminho, encontramos uma menina de olhos esverdeados (mas que, à luz crepuscular irradiada pelos postes, assumiam um brilho quase violeta), ombros magros, pele clara, cabelos ondulados. Ela riu para Cartago e conversamos por alguns minutos. Depois que ela foi embora, Cartago disse-me uma das frases que consagrou aquele verão às garotas perdidas:

Sabe esta menina? Fui apaixonado por ela há seis ou sete anos.

domingo, 4 de outubro de 2009

poema

A CHUVA

A chuva distorce o claro e o escuro,
e quase apaga rostos
do homem e da mulher que estão parados
na esquina, sob a marquise.

Talvez seja melhor assim;
pensar que os rostos ainda existem
porque a esquina ainda existe
e porque chove como antes.
Talvez seja melhor esquecer
que os rostos se desmancharam
como se fossem feitos de cera
ou de qualquer outra matéria pálida.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

poema

30

Tornei-me o recatado bluesman:
o homem que ainda busca Ítaca
mas não em águas fecundas para o heroísmo.
O homem que apenas busca Ítaca
na repetição dos gestos
na palidez dos afetos
no lento pisotear com que o tempo
transforma o rosto do meu pai
no rosto de um morto, e o meu rosto
no rosto de outro homem.
As tardes – aqui, no México, em vilarejos
onde os corpos terminam
como manchas de bolor em frias paredes –
as tardes são tudo o que um homem
pode ultrapassar. As tardes
são tudo o que açoita a carne.
As tardes são o estiolar do lume
que o coração em si próprio
acendeu. As tardes são
a sombra que escurece as águas
e mal se contempla
o que jaz submerso: peixes
que perdem o brilho, algas
e o amor como algo que não respira,
o amor como uma pedra nascida
azul ou vermelha, o amor como uma pedra
nascida para deixar de ser
azul ou vermelha.

domingo, 20 de setembro de 2009

aos vinte anos

20

Ando tão chocado, companheiro,
há qualquer coisa de errada com este início de milênio,
ainda não consegui os meus quinze segundos de fama
e pensar no que poderíamos ter alcançado.
O sacrifício de tantas crianças
só por anunciarmos publicamente a nossa morte.
Poderíamos ter sido maiores que os Beatles
e ao cairmos com tamanha intensidade
amparados por uma inocência qualquer
estaríamos imaginando um novo conceito de belo.
Há mesmo qualquer coisa errada
com este início de milênio;
não dependo mais de mim para morrer
e acho que vou ter de apodrecer por aí
(como um Prometeu incrédulo e maquiado)
em vésperas de me tornar um mito.
Lembro-me de quando você conheceu aquela garota,
Stéphanie, se não me falha a memória,
e de como ficava triste o seu dia
todas as vezes que ela lhe negava um sorriso.
Quando Stéphanie lhe disse que tinha medo de morrer
você finalmente terminou com a banda
para de uma vez por todas ir viver com ela.
É provável que ainda compartilhem
a mesma seringa suja.
Sei que a sua intenção era tornar-se um recatado bluesman,
mas quando ela fez de você um péssimo poeta
você não sabe como foi amargo
ver o meu reflexo dentro de suas pobres canções.
E agora, no final deste dia perfeito,
você só vai colher aquilo que semear –
talvez leve uma vida boa e quieta.
Eu vou fugir para o México,
satisfazer uma vaidade qualquer.
Despite all of this, I’m a modern lover.

20/09/1999

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

poema

Garotas pintam as unhas e esperam.
Eis o que as tardes são: tédio, calor,
cheiro de corpos que sentem o exílio
em que caíram; o exílio que é como
a lembrança de uma luz corrompida.

Garotas pintam as unhas e esperam.
Quanto mais veloz cai o sol, mais lentas
e densas são as horas; são um rio
em cujas águas tudo é agonia,
tudo é perversão de desejos, tudo
é uma cicatriz que já vem podre.

Garotas pintam as unhas e esperam.
As noites parecem as do passado:
o luar é doce jasmim, as nuvens
são inércia e queda, as ventanias
são lamentos de mortos insepultos.

Garotas pintam as unhas e esperam.
A carne teme prisões solitárias,
o coração é piano em ruínas,
a comunhão com a noite é febril
como mergulhar entre as águas vivas.

Garotas pintam as unhas e esperam:
pálido é o arrebol, pálido é
o que ainda se sente com clareza –
os corpos são sonâmbulos que exaustos
querem descansar na impossível relva.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

poema

HOTEL ESCRITO EM LETRAS VERMELHAS

Há muitas sombras e a palavra hotel
está escrita com letras vermelhas
e arde sobre a fachada de uma casa
em ruínas. Ouve-se as prostitutas
e também o alucinado discurso
que em língua estranha o chinês vocifera.
O que não sei é por que visitar
lugares entregues ao desamor
e à sordidez – a resposta, talvez,
seja apenas tola filosofia.
Mais relevante é a chuva: iminente
porque as nuvens estão muito vermelhas
e porque o vento torna insuportável
o denso cheiro de gordura podre.
Porém insisto: tudo é a vida –
eis, talvez, a resposta; ou então
A resposta não existe e perdura
apenas enquanto vejo sair
das sombras a sombra de uma mulher
que vem em minha direção: cruzamos
e o rosto claro vejo – palidez
e candura fugazes, quase etéreas.
No entanto há os olhos, e os olhos
queimam mais raivosos do que a palavra
hotel grafada em símbolos vermelhos.
São estes olhos que acham os meus
e que depois somem, enlouquecidos
pelo tédio das ruas negras, sujas.
No entanto, tudo é vida, e a resposta
- talvez – é que há mulheres belíssimas
vencidas pelo desamor, talvez
pela sordidez; corpos possuídos
pelo demônio que mais berra quando
as noites são trevas irredimíveis
e quando ventos de chuva a cidade
varrem e adivinham que existe mais
do que a selvagem solidão da carne
e o gélido abandono do espírito.

sábado, 15 de agosto de 2009

Dia (poema)

DIA

1.

"Não apenas a memória da mente
dissipa-se; também o corpo perde
vestígios do que foi carícia e mágoa,
talvez um ocaso mais doloroso
do que o do dia que se quebra em cores
esbraseadas, rubras, violetas
e depois, quando o ar cheira a queimado,
não há mais ecos do que existiu."

Escrevia, sonolento, enquanto
o ônibus avançava pela estrada;
manhã limpa e paisagem clara
até o quilômetro em que os destroços
de um acidente ocupavam a pista:
entre a ferragem retorcida, sangue
e, mais adiante, um pano imundo
era o sudário que cobria os mortos.
Perto, grande tumulto de fotógrafos,
policiais e enfermeiros. O trâfego
não fluía e, no interior do ônibus,
um bufão com ares de corifeu
falava dos incontáveis cadáveres
deixados às margens dos canaviais.

O ônibus seguiu, os versos ficaram
inacabados e também a dor do que some
sumiu na transparência azul da manhã:
tanto a morte como a memória são
máculas que o sol trata de queimar.
Mais alheio do que cansado, fecho
os olhos e nem sequer no trabalho
os abro de novo; é como um sonho
no qual escrevo a data tantas vezes.
O ar cheira a papéis podres, histórias
de louca mesquinharia, e às vezes
- ainda cego, alheio, sonâmbulo -
percebo um corpo feminino perto
de mim: percebo o rosto claro, sardas
nos ombros e no colo, e o castanho
pálido dos olhos é um trigal
afogado pelo sol quando o sol
não queima e é um vento de calor.

2.

Ao entardecer, de regresso no ônibus,
vejo as nuvens que se incendeiam pela
última vez no dia – transparência
ora rubra, ora dourada, suja
por ventos que são desejo e cansaço.
Torno a fechar os olhos, tenho o corpo
mais do que velho: doído; e mais
do que doído: batido por fogo
que é mais do que o fogo da carne, mais
do que o fogo que comigo nasceu –
chama roubada de outros corpos, de outros
olhos; chama que ao se esvair avisa
o que a consciência nunca terá
e o que o coração teve por engano.

"Raiva, raiva contra o morrer da luz" –
o verso de Dylan Thomas ecoa
enquanto o ônibus entra na noite
e enquanto os corpos caem na penumbra
quente, grossa. Atrás de mim os velhos
falam do rapaz que morreu na manhã.
Parecem tristes mas depois gargalham
enquanto dividem uma garrafa
de aguardente ou conhaque; e lá fora
- prostradas sob a luz quieta e puída -
as putas esperam seus corpos magros
e seus gestos vencidos, pois a carne
talvez não seja mais do que delírio
que perde o lume, delírio que avança
pasmo ante os mortos dos canaviais
e ante os fantasmas de mágoa e carícia
que ascendem à pele no doloroso
vazio entre sonhos mais violentos.

sábado, 1 de agosto de 2009

em tempos de gripe suína, outro poema antigo

ORÃO, SETENTA ANOS APÓS A PESTE

Saímos, eu e um amigo, para jogar bilhar.
No salão, um velho acompanha a disputa.
É um antigo morador do bairro
e o seus olhos opacos denunciam
uma vida que não excedeu as fronteiras.
Observando-nos, parecia indagar
a alma da própria cidade: também ela
é muda ante o esvair dos anos
e, imerso na profunda noite, o velho
balbucia palavras e monótonas
e repetidas sem cessar:

"Ah, talvez a vida tivesse mais sentido
se tudo fosse como outrora:
os pais barbeando-se com navalhas,
as crianças aprendendo latim
ventos cálidos trazendo o entardecer
e ocultando o demônio da peste e do exílio,
na hora do jantar o cheiro da carne grelhada
pairando sobre a cidade sem prédios,
longas filas diante dos cinemas
que exibiam filmes a branco e preto,
o vizinho que deixa a noite mais sentimental
ao ouvir Tommy Dorsey,
o dissimulado pudor das raparigas,
a promiscuidade dos jovens solteiros,
a murmurejante agonia dos amantes
trespassados por uma súbita abstinência,
o veloz carro de Rieux, o médico,
indo consultar os doentes que morriam
em todos os bairros da cidade."

segunda-feira, 27 de julho de 2009

poema

AGOSTO ou A CHEGADA DO CALOR

Julho se esfarela e agosto
se alça sobre as nossas cabeças -
um sol limpo e antigo, que desperta
a paixão pelas línguas latinas.
Na chama da candeia acesa
busco versos que me falam do calor,
do medo da morte violenta,
das empoeiradas brisas no crepúsculo,
das faces turvadas pela marijuana,
das mulheres perfumadas após o banho,
das crianças que brincam na noite,
do luar que umedece as sombras,
dos vagalumes em praças alegres,
do jasmim que dorme ao relento
e das cidades onde o silêncio é um marulho.
Sol limpo e antigo, tão enrodilhado
na primavera que a sufoca e mata.
Logo virá dezembro, logo virá janeiro,
tardes pesadas, mormaços,
cheiro de terra, de chuva e torpor.

terça-feira, 21 de julho de 2009

garotas

ANDREZZA

Andrezza se espreguiça na manhã
e como se estivesse molhada
a blusa se cola ao corpo
e ao desenhar o seu ventre insinuante
- de um erotismo inefável -
quase me esqueço dos segredos
que ela me conta sobre a família;
o rancor sempre presente,
a vida dupla da mãe e das irmãs,
o conflito de todas pela herança
enquanto o pai, espécie de Lear,
adormece diante da tevê.

terça-feira, 14 de julho de 2009

poema

"É um mundo sem mistérios: os corpos
pedem apenas o que pode ser
gozado – e o que pode ser gozado
é o real, a tão imensa quanto
falhada força de outro corpo.
E é bom que seja assim. É bom que não
possamos ir além, pois ir além
é ter os olhos cegos pela luz,
é o desterro da casa parterna,
é ver apenas o que não existe
na força que extrai a aurora da noite."

Estas foram as palavras de César
no verão em que perdemos a infância,
época de sua primeira fuga.
Meses depois, informou que habitava
um país gelado, de pouca gente:
"Na praia, com as gaivotas e os velhos,
recebo no rosto a primeira luz
enquanto o negro e fundo mar clareia
e mostra os seus limites. Sopra a brisa
e a sua voz de sal, enquanto avança,
basta para que o corpo regozije
e se esqueça do que nunca existiu:
Ulisses singrando as vagas do mar
e a redenção posta além do que é humano.
Pois o que preciso é pouco: silêncio
em mim, um trabalho físico e simples,
jogar com os velhos enquanto cai
a luz, e se o coração não bastar
bastar-me-ão as mulheres vulgares." –

Voltou a dizer César, e foi este
o seu adeus ao mar e à pura luz.
Dias depois, cheiro de algas podres
levou os velhos – colegas de jogo –
ao cadáver de César: olhos vítreos,
rosto caído sobre poucos versos,
o vermelho dos pulsos já escuro
(qual raiz queimada pelo sol)
e, compondo o cenário, uma voz
a princípio tão monótona e lúgubre
que apenas depois, e com muito espanto,
os velhos souberam o que se entoava:
era moon river que se repetia
enquanto o sangue vazava e secava.

domingo, 12 de julho de 2009

de volta às garotas

MARINA

Adorava rir e era extasiante
fazê-la rir, mirar os seus olhos alegres,
senti-la com a palma da mão
e ter a sua cabeça em meus ombros.
Mas um dia Marina desapareceu
e sobre o sumiço vieram os boatos -
uns diziam que realizou
o sonho de ser aeromoça;
outros, que partiu
e não realizou sonho nenhum.
Mas são rumores, e ainda hoje,
quando vou pela Rua dos Ipês,
olho o prédio em que Marina vivia
e, lembrando-me do seu riso,
pergunto-me que destino seria o dela.

Setembro - 2002

quarta-feira, 8 de julho de 2009

poema

Chegam as tardes de estio
e em mim a percepção
do que é o tempo e o sol:
em tudo o que olho, cansaço
e um princípio de velhice;
nas praças, tudo são árvores
cujas sombras esmaecem
e mal protegem os corpos
das ociosas meninas
que descansam no areal.

E eu as olho, temeroso
da triste hora em que o sol
lhes crestará os cabelos.
Eu as olho, e a ternura
é um sentimento cruel
e por isso as tardes cheiram
mal; como se os muitos mares
guardassem sereias mortas
e aos homens, o que se eleva
é um pesado silêncio
e ao odor da maresia
misturam-se tédios, vícios,
crepúsculos venenosos,
e em tudo a corrupção:
no corpo que se deseja,
no espírito que resiste,
no coração que ferido
suja de vermelho o dia.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

garotas

MÔNICA

Mônica tem só quinze anos
e já sabe escrever poemas.
Vejo-a no primeiro sábado de cada mês
e quando diz os seus versos
percebo-lhe a voz trêmula, o rubor facial
e os seios que parecem dois limões
arfam com brandura.
Leves, os poemas adejam no ar
e tudo - até a cidade vista pela janela -
é uma árvore prestes a florir.

Setembro de 2002

segunda-feira, 22 de junho de 2009

garotas

SOZINHA NUM SALÃO DE BILHAR

Na tarde de domingo vejo uma garota.
É como se o seu rosto emergisse
de uma multidão de rostos opacos.
Luminosa face banhada pelo sol,
nudez de pescoço e de ombros descobertos,
vestido que desenha o perfil dos seios
e um aroma de mulher que se dilui
no cheiro de cigarro, no fumo que se ergue
e enrodilha-se nos cabelos negros
e turva a face iluminada
até surgir um semblante indecifrável.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

enfim, os poemas sobre garotas

TALITA

Talita é a garota que estuda no fim do corredor.
Sobre ela não sei mais nada.
O resto é a perfeição dos olhos castanhos,
dos cabelos loiros, da pele sedosa, dos seios rijos,
da voz que ouço quando o frenesi se acalma
e ela passa, distante como uma musa de Cesário Verde,
e parte não sei para onde;
muito provavelmente para um restaurante ordinário
e depois da refeição vai até o fórum da cidade
e respira o cheiro ranço dos processos
até o sol se pôr e o cansaço aflorar
e corromper todos os nervos de seu corpo.

Setembro de 2002

segunda-feira, 15 de junho de 2009

um antigo poema sobre garotas

SARA

Ela ri e diz está a me encabular,
é errado me deixar assim encabulada
quando estou doente;
a chuva que me apanhou na sexta-feira
deixou-me o corpo todo febril,
amanhã será difícil acordar cedo,
ir para o trabalho e só retornar a casa
quando o sol estiver posto.
Depois espirra, assoa o nariz
e fica toda sem jeito
por se mostrar tão vulnerável.
Tenho vontade de beijá-la, mas nada falo
e apenas a olho demoradamente;
vejo a sua face muito vermelha
e os olhos azuis que encontram os meus
e depois, tímidos,
fixam um ponto no infinito
até me olharem de soslaio
e um novo riso surgir na face febril.
Faça as garotas rir, disseram-me uma vez.
Não é um conselho frívolo este.

Novembro de 2002

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Conto

BLOW UP

Pedro sofreu o acidente que o deixou coxo em dezembro, e a sua esposa, se me recordo bem, teve machucados ainda mais horríveis. Portanto o natal foi pouco comemorado: após uma ceia breve e saudações à meia-noite, todos foram dormir. Eu estava sem sono e pensei em pegar o carro e dar uma volta pela cidade, talvez ir até o Radio City.

Na tarde seguinte liguei para um amigo e combinamos de nos encontrar no salão de bilhar. Assim que iniciamos a disputa, começou a chover. Junto ao balcão, o homem que administrava o lugar jogava um estranho jogo de cartas com outro sujeito. Às vezes esse outro sujeito gritava. Perto deles, comendo de um prato que recendia a gordura antiga, estava sentada uma adolescente – rosto claro ungido pelo suor e pela gordura que se emanava da chapa de grelhar hambúrgueres, os seios salientes (talvez engordurados também) sob o fino tecido da blusa, cabelos à altura do pescoço. À medida que a chuva ficava mais forte, a madeira dos tacos tornava-se pegajosa e não conseguimos nos divertir. Antes do crepúsculo eu já tinha voltado para casa e, quando a noite começou a chegar e parou de chover, veio, dos fundos, um cheiro de bananeiras molhadas.

Nos dias que se seguiram, eu e Cartago voltamos a perambular pela cidade velha. As lojas – após a alegria natalina – estavam todas fechadas. A prefeitura ainda não tinha dado início aos trabalhos de limpeza, e as ruas encontravam-se atulhadas de papel picado e jornais de propaganda. Chovia forte quase todas as tardes, mas depois vinha o sol, e ascendia um mormaço doente e preguiçoso. A impressão que se tinha era de que a água estava estagnada há não sei quantas semanas e por isso apodrecera.

Na última tarde do ano também vagamos pelo centro: primeiro uma caminhada pelas ruas quietas e ensolaradas (aqui e ali explodiam bombas, e ao mormaço fundia-se o cheiro de pólvora), depois algumas partidas no salão de bilhar e por fim uma visita ao shopping, que tinha todas as lojas fechadas e, na praça de alimentação, as cadeiras empilhadas. Era a última sessão de cinema do ano e havia poucas pessoas na sala de exibição. Sentámo-nos e, enquanto esperávamos o filme, vimos chegar um grupo formado por uma mulher e duas raparigas de quinze ou dezesseis anos. As meninas não pareciam ser irmãs ou primas – o tom da pele, a cor dos cabelos, os ossos do rosto, as sombras ao redor dos olhos, os gestos: nada indicava parentesco e o único aspecto que tinham em comum era uma magreza desengonçada (era como se o silêncio e a melancolia – uma tristeza apenas adivinhada, apenas imaginada – tornassem o ar mais espesso ou rarefeito; como se as duas meninas, ou melhor, como se os seus dois corpos magros ainda não estivessem acostumados a variações na densidade das horas).

Quando saímos do cinema e ganhamos a rua, o crepúsculo ia pela metade. Tinha sido uma tarde sem chuvas e um sopro quente varria os papéis e as copas das árvores. Bombas ainda explodiam aqui e ali (agora com mais frequência). Do alto dos postes descia uma luz que, misturada à poeira do entardecer, assumia um tom alaranjando, enquanto o céu poente oscilava entre matizes pálidos e de um azul muito escuro. Por quase uma quadra, a mulher e as meninas caminharam diante de nós, e durante todo o tempo tivemos a impressão (agora também em relação à mulher) de magreza destroçada, aniquilada. Era como olhar para o retrato de alguém – um retrato tirado durante um momento de introspecção – e adivinhar uma morte triste, talvez por suicídio.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poema

Não falávamos sobre o amor: falávamos
sobre o abandono, sobre apenas ter
a companhia do próprio coração –
tema surgido ao acaso, talvez
porque ontem o límpido céu de maio
cobriu-se de cinzas, e o vento frio
era açoite sobre a carne, açoite
além da carne, açoite talvez
sobre o espírito, sobre a cicatriz
de sangue, de mágoa, de solidão.

"Dói estar apenas na companhia
do próprio corpo, do próprio cansaço;
mas também dói buscar a comunhão
com o que está fora: seja uma tarde
de pura luz, seja moldar um outro
corpo ao nosso corpo." – afirmou Elisa,
e os olhos eram dois peixes negros, dois
peixes que sentem as sombras caírem
sobre as águas no limiar do inverno.

"Sim, tudo dói" – falei após o silêncio.
"Dói o amor, o desamor, dói ser carne,
dói o que temos e o que longe está
de nossas mãos nuas, de nossos corpos
talhados pelos ventos e colhidos
pela morte; como se apenas fôssemos
rubra luz entre duas transparências –
mas talvez para o fácil não nascemos,
talvez tenhamos nascido somente
para a alegria mais difícil, para
o gozo na escassez, para o que não
podemos ver e com fúria buscamos" –
respondi e me lembrei de outra tarde;
uma tarde após o amor, e eu na praça,
cansado de mim, à sombra das árvores,
bebia garapa, olhava os homens
e estes eram apenas um borrão,
apenas sombras cambiantes, vultos
batidos pela luz outonal –
gás que não se diluiu quando a chuva
veio; uma chuva breve e fina,
cujos pingos, trespassados pela luz,
poucas cabeças ungiram, lembrando
esparsa e clara poeira de estrelas.

E talvez o amor seja apenas isso –
pensei tanto naquela tarde como
diante da miúda cujos olhos
eram tristonhos como peixes náufragos:
a alegria do amor é fugitiva
por talvez se encontrar além dos corpos
que se entrelaçam, além da ternura
com que criam a chama que talvez
seja apenas o delírio de ser
iguais aos deuses que nunca existiram,
iguais aos eleitos que ungidos foram
por mentirosa poeira de estrelas
(pois até para o delírio é preciso
sorte: algo como se deparar
com um crepúsculo de sol e chuva
e ter o corpo envolvido por tanta
luz, tanta pureza, e então gozar
o breve milagre desse minuto
feito de brasas que, ao se acenderem,
nessa hora percebem que são finitas).

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Poema

IDENTIDADE

Lua alta e céu estrelado;
após o frio recebo o calor
como se voltasse de um país estrangeiro.
Deitado na rede após o jantar
ouço os ventos sobre as samambaias
e as vozes que ao longe ecoam
falam a língua que adoro ouvir.
O fundo do quintal sempre foi o mirante
de onde eu podia ver toda a cidade.
Aqui, malgrado meus abismos e raivas,
não sou estrangeiro
e até o luzir dos vagalumes
tem um cheiro de terra queimada:
noites que não existem
em nenhum outro lugar do mundo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Poema

MARIANA

Se existe candura nas manhãs
esta candura cheira a flores queimadas
pelo orvalho, cheira a terra umedecida
pelo que foi o luar e que agora
é a palidez que se esbate, é o naufrágio
- em esbraseados tons de vermelho -
da última estrela da madrugada.

Se existe candura nas manhãs
é porque o mais negro silêncio
é agora um canto de pássaros,
é porque da terra ergue-se uma voz
apenas pressentida durante a noite
e que agora é cristalina, é fecunda
como um rio de águas claras
murmurejando nas sombras.

Se existe candura nas manhãs
é porque Mariana abre os olhos,
é porque o seu rosto se acende,
é porque o sangue volta a convulsionar
e lamenta o sonho que deixou de ser sonhado
pois cada manhã é continuação e recomeço,
cada manhã é uma dádiva ao corpo
e Mariana – espírito ainda entorpecido
mas carne fremente – sai
para uma corrida pelo bosque:
o ar frio magoa-lhe a pele
e o rubor surgido nas maçãs do rosto
é o rubor da vida que perdura,
é o rubor das açucenas
que resistem ao orvalho e ao sol.
Assim Mariana corre pelo bosque:
nos olhos, a tristeza pelo sonho que deixou de ser
é um começo de alegria agora,
é um desamparo que se muda em desejo,
é um desejo que se muda em força,
é uma força que antes de se esgotar
adensa as manhãs e coloca um cheiro de sangue
- fecundo e quente sangue feminino -
em cada tremor de luz, em cada árvore,
em cada canto de pássaro,
em cada continuação e recomeço.

domingo, 26 de abril de 2009

poema

POEMA PARA FICAR ALEGRE

Se me lembro dos seus olhos e fico triste
não vou ouvir sinatra e não vou beber conhaque
que isso aumenta a minha tristeza.
Vou ler aquele poema chinês escrito há mil anos
e que fala das acácias que perdem o cheiro
e da insensatez que é amar ou estar lúcido.
Depois vou até o fundo do quintal;
contemplo o céu estrelado, enluarado
e respiro os girassóis, as rosas, os jasmins.
Se a vida perdura, único milagre possível,
e se o aroma das flores volta após o inverno
porque não pensar que coisas simples e pequenas
- como o amor ou a tristeza de um homem -
tenham solução e que a alegria vai nascer
antes de raiar a próxima aurora?

domingo, 12 de abril de 2009

Poema

Hoje as ruas estão ermas
e a cidade fecha-se, enclausura-me
dentro de meus poemas.
Kavafis, saio em busca de Kavafis
ou de qualquer outro poeta
que ande por estas ruas:
Eliot transmudado em Tirésias,
Dante guiado por Virgílio, qualquer um.
Onde encontrá-los
no deserto onde só a minha voz ecoa?
Como cantariam eles a aridez da tarde
e os vivos e os mortos?
Como cantariam eles o silêncio
destas ruas que vazias esperam
os bárbaros que já aqui chegaram
e constituíram família?

domingo, 5 de abril de 2009

Poema

Irrompe serena a tarde de maio,
a tarde que nos leva até a praça
onde cada homem canta o seu exílio
e onde pungentes flores são vendidas
numa cidade, uma babilônia
ao mesmo tempo casta e bestial.
Assim permaneço, a contemplá-la
enquanto ela colhe rosas vermelhas
e respira o perfume dos jasmins
como um inaudito sopro de vida –
a centelha do amor que perseguimos
enquanto vem o brando entardecer,
o derradeiro ardor do sol poente
e as sombras adejando sobre a casa,
mas agora a casa está redimida:
há um vaso com lírios e crisântemos
na sala de jantar, o que convém
à imensa fragilidade da carne.

domingo, 29 de março de 2009

Poema

É jovem a terra: presenteemos
um ao outro com aquilo que é mais
finito: beijos, carne que se rasga,
passeios pela cidade que deixa
de nos pertencer, talvez o desterro
em brancos balneários ou até
a ternura por pássaros e ocasos.

Não ignoro: tudo findará
apesar de eu pouco pensar no fim.
Ainda é o começo, e não há
alegria maior que começar:
saber do lume que enlevadas mãos
incendeiam, de um corpo desbravar
a sua primeira vitalidade,
em um coração residir e nele
descobrir uma falhada inocência.

Mas é o começo, e no começo
em dádiva é possível transmudar
a mais bela, a mais frágil finitude.

domingo, 22 de março de 2009

Poema

A tarde começou seca, inóspita.
O céu, em tons de ardósia, era um bloco
de gelo sujo que lá na lonjura
em vapores vermelhos esvaía-se;
e os ventos, ao trazerem tais vapores
às ruas, sobre as ruas espalharam
essências de cinza, sangue e motores.

Depois, antes ainda do crepúsculo,
este céu foi cruzado por relâmpagos:
baixas nuvens romperam sobre as ruas,
ecos tonitruantes, luz corrupta
e por fim caiu a chuva, mas não
um temporal – apenas uma chuva
de pingos grossos, gelados, a qual
rolou rios de lama sobre as sarjetas.
Nos postes tremeluziram as luzes.
O que era opaco e branco conseguiu
tons violáceos, e eu, inerte sob
uma marquise, a olhar a sujeira,
pensei na miúda que antes da chuva
por mim passara com seus olhos claros
e a pele clara e um fulgor igual
ao das magras musas feitas de luz
que se esbateram e depois sumiram.
Não recordo os seus rostos mas recordo
que há poucos anos ainda viviam
e procuro o que mudou desde então.
Igual a cidade, igual a carne
aos anos em que a morte, de tão pálida,
não passava de pálido terror.

O que talvez mudou, pensei comigo,
é que para as raízes perdi corpo
mais do que amado: santo – e santo é
apenas por ter sido maculado
pela terra que depois o roeu.
E outro corpo, este luz e pujança,
amei apenas para descobrir
que ainda durante a febre da carne
a carne pode fugir das mãos nuas.

O resto são dias que se repetem
como se outros dias não existissem:
tardes chuvosas e horas lamacentas
findam o calor; dias cristalinos
de maio a julho, até que em agosto
sopram mais fortes os ventos do estio
e o que renasce soma-se aos augúrios
de que tudo voltará a morrer –
céu branco substitui o arrebol
e as brumas púrpuras do entardecer
coagulam-se e mudam-se na noite
e em astros de brilho gordo, argênteo.
Como partir? Como fechar os olhos
e do abrigo das estrelas fugir?
Como abandonar os dias iguais
se iguais os dias alegres e igual
o medo de a palavra esperdiçar
(a palavra como sentido nunca
achado; como sentimento nunca
sentido; a palavra como afeto
mudo; a palavra que fora daqui
será mais do que oca: inexistente)?

domingo, 15 de março de 2009

Poema

POUCO A POUCO, OS DIAS DE CALOR

Pouco a pouco, os dias de calor
mudam-se em horas de irisada luz
enquanto aqui, neste quarto de estudos,
a morta infância parece afogada
em águas claras e lisas– as quais
não escavam os seixos mais profundos.

Quereria eu, em bonito dia,
da carne caduca alcançar a fuga
para a carne pueril visitar.
Com esse corpo, à praça central
iria – perto das flores do estio
e dos mascates da falência próximos –
e lá escapar do exílio que à mente
e ao coração isolou; regressar
às tardes mais do que suaves: fáceis,
e às moças mais do que fáceis: entregues
à febre que por esplendor se toma.
Esplendor o qual, como o orvalho queima
a frágil relva, machuca os seus rostos
na hora que a luz parece perene
embora morra: crepúsculo claro
e veloz – crepúsculo feito sonho
no qual a dor não é dor, e o cair
não é cair, e o tempo não é tempo
(assim inscientes vamos ao Hades,
assim cegos pela primeira vez
a estiolada luz nos vaza os olhos,
assim ignorantes esquecemos
as palavras tolas e os deuses tolos).

Nada a fazer contra esse entardecer.
Embora branda, a tarde lá fora
é a tarde de agora, pois a noite
que virá depois, mesmo constelada,
é a profunda noite da velhice.
E a praça central, embora concreta,
não é a praça central: é apenas
um lugar triste, algo como um túmulo
ou um nome de morto que também
é o nome de um vizinho – um homem
calado mas gentil, familiar
mas estrangeiro: apenas a sombra,
a estranha sombra do que não existe.

domingo, 8 de março de 2009

Poema

MAIS VELHO DO QUE TELÊMACO

Estar aqui, na casa paterna,
entre os animais e o pomar
cujos frutos, colhidos pelo dia, apodrecem
sobre a terra, à sombra da infância.

Por mais quantos anos isso durará?
Percebo que fiquei tempo demasiado
e que se exilar desses jardins e dessas noites
seria o início da morte.

Assim não seria se jovem
- com a idade de Telêmaco, talvez -
eu fosse visitado por Palas
e com a sua empresa tivesse
ido para longe de Ítaca.

Mas essa deusa de olhos glaucos, se existe,
é a fulgurante vigília das estrelas
que ardem nas noites límpidas e quietas:
trazido pelo vento, não chega
o marulhar das ondas contra as pedras.
Tudo o que ouço – sozinho nos fundos
da casa, perto da piscina –
é o que ouço desde menino:
morcegos que agitam as asas
e a faiscante trajetória dos vagalumes
e os gatos que andam sobre as folhas secas
e o frêmito que chega da cidade
e outro murmúrio, este tão misterioso
que ora penso ser o chispar dos astros próximos
e ora penso ser o lamento da vida
que de mim se evade.

E tudo é tão familiar: sei de onde virá o sol
e com que sutilezas uma estação ingressará na outra.
Portanto, se tudo é como na infância,
por que há noites em que a alegria verte-se em dor?
Por que um anseio por outro céu e outra casa
se a casa que habito e o céu que contemplo
é o que mais temo perder?
E por que desejo que as estrelas
sejam de fato a deusa dos olhos glaucos?

Se fecho os olhos, até imagino como ela
viria até mim, que decisivas palavras diria
e como depois, mudada em faiscante vagalume,
retornaria ao céu estrelado.
Eu ainda não escutaria, ao longe,
as ondas que rebentam contra as pedras,
mas talvez deixasse de temer
o crescente eco que de mim se acerca.

domingo, 1 de março de 2009

Espólio do antigo computador - Conto: Documentário

Os olhos dele eram azuis, assim como os dela. Quem observava a ambos, pai e filha, não pensava que pudesse ser adotada: um bebê vindo do sul com apenas quatro meses de idade, subnutrido, olhar muito triste, rosto pálido, com poucos cabelos ruivos cobrindo a cabeça. O homem tinha trinta anos; a esposa era mais jovem, contava vinte e seis. Ele era médico, cuidava de crianças, embora na faculdade tivesse sonhado ser oftamologista.

Os olhos eram azuis, mas agora ele está morto e ela está diante de um homem de olhos e cabelos negros. O que devo dizer? O riso é encabulado, as pessoas costumam ficar tímidas quando filmadas. Fale sobre aquela sua teoria. Qual teoria? A que diz que as pessoas têm mais virtudes do que defeitos. Fale para a câmera, por favor. Não é teoria, é apenas uma opinião. Mas fale. Eu acho que as pessoas têm mais virtudes do que defeitos: se você conhece uma pessoa, pode ser o mais cruel assassino, vai conhecer as suas qualidades e vai nascer o sentimento de afeto. É isso que devo dizer? É, é isso mesmo, as pessoas têm mais virtudes do que defeitos. Desliga a câmera.

Sempre o chamou de pai, mesmo durante toda a confusão, aqueles meses dominados pela loucura e pelo ódio. Ele estava num esquife na última vez que o viu. A sala onde aconteceu o velório fedia; cheiro de cigarros, de café requentado, de flores maceradas, de comentários graves. Aproximou-se com passos lentos, com medo da magra figura coberta por lençóis brancos. As únicas partes do corpo descobertas eram as mãos, cruzadas sobre o peito, e o rosto pálido e chupado. Apresentava a morbidez típica dos suicidas. A sala fedia, cheiro de cigarros, de ódio também - ódio, espanto e culpa. Foi durante uma tarde de muito calor. Antes de sair para o funeral, quis almoçar, mas estava sem apetite. Apenas ficou na cozinha, em silêncio, com os cotovelos apoiados sobre a mesa de mármore, olhando as samambaias que eram queimadas pelo sol do meio-dia. No decorrer da cerimônia as pessoas começaram a transpirar. Tornou-se irrespirável o cheiro de flores para defunto, um cheiro doce, muito doce. Sobre o rosto do pai pousaram algumas moscas. Quis espantá-las, mas não conseguiu.

O homem de olhos negros a observa. É um amigo, embora saiba que ele está apaixonado por ela. Quem vai ouvir agora? Não sei. No céu amontoam-se nuvens de chuva e o vento que percorre a cidade uiva ao bater contra a janela. Poderia chover, é bom pra dormir. O homem de olhos negros a observa. Ela mantém os olhos baixos, melancólicos. Tem vontade de filmar a sua primeira lembrança. Foi numa fazenda. Lembra-se da sombra do pai projetada sobre a terra batida, avermelhada. A sombra do pai caminhava ao lado da sua e ela, ao caminhar, dava passos cada vez mais largos, na tentativa de pisar os joelhos da própria sombra projetada no chão. O sol era tênue. Pararam diante de um viveiro enorme, habitado por coelhos (no viveiro ao lado galinhas faziam um barulho estridente e seco). Respirava-se o cheiro de água suja. O pai pegou um coelho, o menor de todos, e deu para que ela o segurasse. Os olhos do coelho estavam cheios de pavor. Ela ficou imóvel, segurando o animal com as duas mãos, sentindo o coração do coelho bater cada vez mais acelerado, como um pequeno tambor. Tuctuctuc: o som era amortecido pelas camadas de tecidos e músculos, não deixava qualquer eco. Ela também estava apavorada. O pai ria.

Foi pela manhã que os policiais vieram, tão subitamente que o pai parecia ser inocente. Considerou que talvez o filme devesse começar com o som peremptório das batidas na porta, com o rosto do pai assustado, a barba por fazer, os olhos azuis, a expressão de rato acossado contra a parede. Graças à Deus, sua mãe está morta, disse a avó, e ela nunca soube se este foi o seu último comentário lúcido ou o primeiro sinal da demência. Por que Graças à Deus? - pensa todas as vezes que olha a avó. Acha estranho ter sido tirada de uma família que nunca conheceu para ser colocada numa família maldita, para ser muito mimada na infância e violentada na adolescência. A mãe está morta, o pai também. Graças à Deus por quê? Tem vontade de ligar a câmera e perguntar. Somente a avó ainda resta, a avó quase cega, com os olhos cobertos por uma membrana esgazeada (olhos idiotas, ruminantes), com a boca sempre nojenta, a pele mal cheirosa, marcada por sulcos profundos e secos, como se o câncer que a devora tivesse deixado de existir, deixando-a em ruínas, como se a avó tivesse ficado velha apenas para se cagar e para não reconhecer a suposta neta.

Chega uma hora em que o cansaço quebra o seu espírito, é que há muitos filhos da puta no mundo. E esses filhos da puta, quando apanhados, transformam-se em cordeiros de olhos assustados e inocentes. É horrível olhar para um homem e saber que ele é culpado: você quer matá-lo, é um ódio que nasce aqui dentro (aponta o próprio peito) e depois que você começa não consegue parar. É horrível saber que o seu coração vai se encher de maldade a partir do momento em que você começar a torturá-lo, porque é horrível machucar um homem, mesmo o mais culpado, é horrível chutar o rosto de um homem e ouvir os barulhos dos dentes se quebrando, é horrível, horrível.

Desliga a tevê, cansada do depoimento do policial. Silêncio. O clarão de um relâmpago ilumina o quarto. Fecha os olhos e espera: o trovão demora cerca de sete segundos para ecoar. A chuva aumenta. No quarto escuro o cheiro de terra molhada soma-se ao cheiro do incenso e ao cheiro da avó, que dorme no cômodo ao lado. Vêm a vontade de dormir e a saudade do antigo nome, que murmura como se chamasse alguém. Depois fica atônita, sem entender por que motivos sente saudades de se chamar Muriel. Acho que é porque estou ficando velha, conclui, virando-se de lado e puxando as cobertas até quase cobrir o rosto. A chuva deixa de ser ouvida, mas permanece o cheiro de terra molhada. Acho que é porque estou ficando velha, a frase ecoa no quarto escuro, tão absurda quanto antes. Fecha os olhos e fica muito quieta, como se quisesse ouvir o próprio coração bombeando o sangue cuja origem lhe é estranha.

O avô também tinha olhos azuis, a família sempre foi pura, próspera. Das sombras da vigília emerge, com perturbadora nitidez, o retrato afixado na parede. São três as pessoas fotografadas: o pai ainda criança, a avó e o avô. Os três com os olhos fixos na câmera, como se soubessem que se tornariam fantasmas. Pensa demoradamente no avô, que nunca conheceu, um homem que todos dizem ter sido severo e justo. Pensa depois na avó, ao ouvir a pesada respiração no cômodo ao lado. Por fim pensa no pai, como se a sua alma ainda estivesse no quarto, à espreita, esperando que ela adormecesse. A alma é uma grande mentira, pondera, entre o sonambulismo e a vigília. A alma não existe, o que existe é a culpa que a morte não pode expiar – a culpa e o cansaço e um ódio que as pessoas não levam quando morrem; um cansaço e uma culpa e um ódio que ficam por aí, até serem herdados por alguém.

Eu acho que as pessoas têm mais qualidades do que defeitos. Se você conhece uma pessoa, pode ser o mais cruel assassino, vai conhecer as suas qualidades e vai nascer o sentimento de afeto. Na tevê, o homem de olhos negros também é um fantasma otimista, por isso é perturbador ouvi-lo. Ele fala sobre conhecer os homens e se esquece do real objetivo do filme: transformar em quebra-cabeças uma história que a realizadora conhece muito bem, como se a compaixão fosse apenas nascer dos pensamentos mais precários e dispersos, como se o perdão só pudesse decorrer da impossibilidade de compreender um homem, seus atos, seus crimes, sua miséria, seus pecados. Considera que talvez o filme devesse começar no funeral do pai: o corpo esquálido e franzino afundado no caixão enorme, os lençóis brancos, descobertas apenas as mãos e o rosto pálido, o cheiro de café, cigarros, flores para defunto, o calor lancinante, as manchas de suor nas camisas dos homens, a perversidade e a hipocrisia dos comentários graves, a culpa que a morte não pode expiar, o cansaço, o zunir dos mosquitos que pousam sobre o rosto do pai morto, ela tentando espantá-los e falhando.

É mais fácil adormecer com o quarto iluminado pelo brilho da tevê, enquanto ouve o homem de olhos negros; o homem que fala sobre perdoar e aceitar como se fosse a reencarnação do próprio Cristo. A decadência de uma família de boa fortuna, the rise and the fall, é assim que entenderão o filme, mas prosperidade e decadência são idéias idiotas, sem o menor sentido. No quarto ao lado, a avó ressona; o cheiro de terra molhada vai se diluindo, ou talvez seja o sono chegando. Então uma família é decadente por que o pai é um estuprador e a avó, uma demente que vive nas sombras, fedendo a bosta e a mijo? Então a casa vizinha é afortunada por que na hora do jantar todas as luzes estão acesas e ouvem-se os risos das crianças? Tudo é absurdo e sem o menor sentido, alegria e dor acontecem de modo totalmente imprevisto, como um trovão reverberando na tarde quente. O filme deve mesmo começar com o peremptório som das batidas na porta. Finalmente adormece e sonha com o pai debruçado e ofegante sobre seu corpo. O pai fede a bosta e a mijo, como a avó, que tudo consente, no limiar da loucura, e diz Graças à Deus a mãe está morta.

Os olhos dele eram azuis e os olhos desta outra são negros. A pele é muito clara e os cabelos são castanhos, lisos e longos, com a franja caindo sobre a metade direita do rosto, o que confere ao seu semblante uma inesperada doçura. Chove pela terceira manhã consecutiva e, para além da janela cujos vidros estão embaçados pela umidade, a cidade é um tumulto de sons e lama. O riacho transbordou e alagou as ruas que separam o centro dos outros bairros. A sala recende a incenso, a maneira encontrada para mascarar o forte cheiro de esgoto. A sala é um cômodo pequeno, muito bem decorado, com uma mesa ornada por flores brancas e roxas.

Eu sinto que ainda não fui resgatada. A mulher olha para o canto da sala em que está o piano, mas os seus negros olhos parecem vazados. Ambas têm a mesma idade, a mesma beleza pálida e fugaz. Eu ainda sinto o seu pai dentro de mim e tenho ódio de meu corpo, ódio de respirar, ódio de ouvir o coração pulsando e mantendo vivo o que o seu pai deixou dentro de mim. Por isso o piano. Um dia desejei tocar como quem respira, estar limpa por dentro, mas não consigo, simplesmente não consigo, o seu pai ficará sempre vivo dentro de mim – e eu odeio o meu corpo mas não odeio quem o destruiu pelo simples motivo do ódio não dar conta de todo horror e espanto. A mulher de olhos vazados fica em silêncio A branca luz filtrada pela janela, ao incidir oblíqua sobre o seu corpo, dá ao rosto uma natureza diáfana, talvez etérea. Gostaria de ir para muito longe. Gostaria de ter nascido em outro lugar, um lugar muito longe daqui. Gostaria de ter nascido longe do seu pai, mas não consigo partir, sempre vou carregar o que foi posto dentro de mim, sinto-me grávida de alguma coisa maldita, não posso partir, odeio o meu corpo e apenas sinto saudades (um sentimento constante, vago, indefinido, como o sonho de outra pessoa) de um lugar muito distante. O silêncio retorna, o perfume do incenso absorve o cheiro do esgoto. A documentarista estremece de medo, contempla a mulher de olhos vazados como uma aquarela em contraste com a manhã branca e chuvosa. Mas sabe que não será sempre assim, sabe que em casa, quando voltar ao depoimento dado, estará diante de um fantasma, e nada é mais triste do que ver a mulher mais linda da cidade transformada em fantasma.

Muriel, o meu nome era Muriel, diz a documentarista. A mulher de olhos vazados vai até a janela e escreve as letras do alfabeto no vidro embaçado pela chuva. Eu preferiria não ter um nome, não sei o que Sara significa. É um nome lindo, dizem, mas talvez seja como um túmulo de mármore; algo com a função única de evitar que os vermes devorem os mortos sob a luz do sol, ou talvez seja um enigma, como uma palavra dita em língua estranha. É assim que ouço o meu nome ecoar, quando me chamam: como uma palavra dita em língua estranha. O que significa ser Muriel? O que significa saber que o seu pai é um monstro? O que significa toda a dor do mundo? As mulheres se olham em silêncio, até que a documentarista se vira e sai do apartamento. Liga o carro e não vai além da primeira esquina. As águas revoltas do riacho a cercam. O barulho da chuva caindo sobre o veículo é uma canção monótona, que provoca o sono. Os vidros começam a embaçar e a água penetra, água suja, provavelmente contaminada pelos excrementos dos ratos. Sente o carro perdendo o peso, começando a rodar muito lentamente, sendo levado pela correnteza, até que um baque interrompe o movimento, devolvendo o veículo ao estado de inércia. Nas ruas alagadas, como manchas imóveis, as pessoas observam o carro. Ela evoca a primeira lembrança da infância. O coelho em suas mãos. Fecha os olhos, escuta novamente o tuctuctuc cada vez mais apavorado, mas não sabe se é o som do próprio coração ou se é o coração do coelho. As pessoas começam a jogar cordas para tentar salva-la. Ela lembra-se do medo que sentiu ao segurar o coelho e de como o pai ria como se fosse inocente. Mas agora ele está morto. Ela sente saudades e mais uma vez se lembra da tarde em que segurou um coelho apavorado. Considera que assim deveria começar o filme: com o som das batidas de um coração, de qualquer coração, simbolizando que há certas culpas que a morte não pode lavar.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

trecho

Oklahoma lembrou-se da infância, do roseiral que era cultivado por sua avó materna em um canteiro onde também cresciam hortelãs e outras ervas miúdas e sem nome. A idéia de que tudo aquilo estava acabado lançou, em seus pensamentos, a consciência de uma implacável mortalidade. Deu as costas para o roseiral e, ainda embalado por idéias funestas, virou-se para o galpão, passou a contemplar os candidatos que não paravam de chegar para a prova. Todos eles ingressavam no galpão pelo enorme pórtico que vinha do pátio e, acima das suas cabeças, também entrava a luz do sol. Agora ofuscante e poderosa pela primeira vez no dia, caía oblíqua e, ao ser refletida pelo piso frio, assumia a forma de um clarão que toldava a visão de Oklahoma como se fosse uma neblina. Por vezes, quando o vento era mais forte, esse borrão, cuja cor oscilava entre o cinza e o dourado, formava um torvelinho que nada mais era do que uma mistura desses dois matizes. Em outras vezes, tangenciando a claridade que se esbatia, era possível acompanhar a precisa trajetória de um raio de luz. Também havia momentos em que a paisagem assumia uma limpidez inesperada, ou melhor, a luz ainda caía oblíqua, o chão ainda devolvia a claridade em forma de borrão, mas esse caos de cores apenas emoldurava as pessoas que passavam pelo pórtico, e então Oklahoma evocava Eliot (Cidade irreal, / Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno / Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos, / Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.); referência literária que se mantinha enquanto o sol não se escondia atrás das nuvens pois, quando isso acontecia, o interior do galpão era tomado por uma claridade distante e de um azul vagamente esfumado, de modo que Oklahoma lembrava-se de uma passagem de Austerlitz: o personagem que dá nome ao livro relembra a sua adolescência no País de Gales, relembra os momentos em que contemplava uma barragem e sabia que, submersa nas profundezas das águas, jazia uma cidade inteira; e ao evocar esse fragamento de livro era como se todos ali, Oklahoma e também aquelas pessoas que o cercavam, habitassem essa cidade afogada e esquecida. Os outros, os que habitavam o mundo da superfície nunca se aventurariam por estes confins; estavam todos na capital e em importantes cidades da América e do Velho Mundo, ao passo que ele vivia um presente ininterrupto pelo simples fato de viver um tempo que não se ligava nem com o passado nem com o futuro do planeta: o que ele era e o que ele significava acabaria ali, destruído pela morte e submerso pelo presente de outros como ele.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Poema

Agora o sol arde-me sobre o rosto
mas passa o instante, e onde
há luz haverá apenas a memória da luz;
claro eco que também será
maculado e depois soterrado
pelas horas vindouras.

Ao relembrar essa transitória chama, a consciência
curva-se sobre si própria
como o homem que se curva sobre um poço
e pensa: algo morre lá no fundo.

Depois esse homem fecha os olhos,
respira o sopro que se ergue
e sobre o poço curva-se mais uma vez
apenas para perceber como as sombras
estão mais próximas:
lá na fundura, o que escuta
é o diminuto arfar de um animal
embora haja algo mais: a memória
de uma tarde de maio deixou de existir
e os rostos amados e a alegria
são estrelas em um céu que se afasta.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

dois poemas sobre garotas e a cidade

1. EU AS VEJO NAS ESCADARIAS DO PRÉDIO

Eu as vejo nas escadarias do prédio.
São três e quedam-se em silêncio.
A alguns metros, no salão de festas,
celebra-se um aniversário
em meio a risos de crianças
e a estouro de balões.
Mas elas não são convidadas
que se extraviaram: vivem
no prédio e talvez desceram
para respirar ares mais impuros
e porque a cidade, vista do alto,
é uma larga planície cravejada
de luzes quietas e sonolentas.
Mas aqui, quando olham longe
- para além do néon e das constelações -
a cidade adquire outro significado:
o antes monótono rebrilhar de luzes
muda-se no bafo que se emana
da carne ansiosa e sonâmbula.
Talvez por isso, das três meninas a mais
bonita, tenha pintado a boca
e use um belo vestido
apenas para descer até as escadarias.

2. EIS A TERRA SANTA: AS RUAS

Eis a terra santa: as ruas
nas imediações do salão de bilhar.
Até lá vou em tardes sufocadas
e em noites abrasivas e ansiosas.
É puída a luz que desce sobre os telhados,
as fachadas das casas são ruínas,
o ar grosso, poeirento, e as árvores
são hipnóticas em seu balançar.
Todavia, para onde quer que se olhe,
há miúdas: colegiais, balconistas,
bailarinas, vendedoras em comércios falidos,
enfermeiras, advogadas há pouco saídas da faculdade
e que, empertigadas, gastam as tardes
em escritórios de rábulas.
Tão logo as vejo, logo as esqueço
e talvez seja melhor assim:
o esplendor do sangue e da carne não perduram
mais do que poucos anos.
Mas há dias, quando o entardecer é arido,
em que agonia da beleza que se perde
é o mais forte perfume
que se respira enquanto o escasso vento
ergue torvelinhos de terra vermelha
e enquanto a luz convulsiona.
Essa terra santa, então,
muda-se em um lugar triste e maldito.
Há pouco a se fazer além de ouvir
os plangentes e alongados sons
que não parecem vir das flautas
dos bolivianos – pois a melodia
soa como um fóssil duro e silencioso
que, durante todo o dia,
o sol tratou de erodir.
Ouve-se também, nesses ocasos,
as andorinhas que em bandos
entram nas copas das árvores.
Assim prossegue o entardecer:
o que era incandescente e dourado
rebenta sobre a cidade
como se fosse uma onda escarlate.
Depois arrefecem todas as cores
e a consciência, cansada,
às vezes mal espera pelo próximo dia
e às vezes tentar salvar do esquecimento
a memória de ínfima e fortuita beleza:
por exemplo, a lembrança de uma garota
de rosto pálido, muito magra,
cabelos longos, lisos, e que oscilavam
entre o castanho e o ruivo.
Ela ia pela praça, e a luz fina e crepuscular
Incidia-lhe oblíqua sobre a face.
Acima de sua cabeça, pássaros voavam
e quando a claridade tornou-se penumbra
temi que as sombras recém chegadas
fossem despedaçar o seu corpo escasso
como, em tela pintada por Goya,
Cronos devora a própria prole.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Espólio do antigo computador - Conto: Quando Reencontrei Rubi

Reencontrei Rubi após cinco anos. Foi em uma sexta-feira, ao entardecer. Era véspera de feriado. Eu acabara de sair do trabalho e não queria voltar para casa. Preferi uma solitária sessão de cinema, havia pouca gente, mas lá encontrei Rubi. Os seus olhos castanhos, que no passado eram como a úmida sombra que se aloja no fundo de um poço, pareciam diferentes. Exceção feita a essa mudança, ela não me parecia mais velha ou mais cansada. Ao observar os seus gestos, lembrei-me de que às vezes ela dizia me amar e às vezes dizia ter vontade de morrer. Por isso eu havia fugido, mas nunca soubera se fora por medo de vir a amá-la ou se por medo de nunca vir a amá-la. Enfim, eu havia fugido e agora a reencontrava – eis a síntese do que deve ser dito.

Dentro do cinema, pairava um cheiro gelado, e talvez por isso eu a tenha beijado: para impedir que a umidade gelada entrasse dentro de mim. Rubi, como nas outras vezes em que eu a beijara, não usava batom. Quando inclinei o corpo na sua direção, ela apenas deixou a cabeça cair, sem peso, na direção de meu ombro. Parecia muito calma.

O apartamento em que agora Rubi vivia era dos mais simples: apenas cozinha, sala, banheiro e quarto, todos unidos por corredores estreitos, curtos, iluminados por pequenas lâmpadas que irradiavam um esfumado brilho vermelho. Um piso gelado recobria todos os cômodos, e, à medida que a luz violácea e cambiante sumia por entre as nuvens carregadas de chuva, eu percebia a umidade que se evolava das paredes e do chão. Havia também uma sacada; esta ficava diante de uma rua suburbana, e nas casas todas as famílias pareciam se preparar para o jantar. No céu, a escassa luz natural, ao misturar-se com a claridade amarela emanada pelos postes, tornava o entardecer pardacento e embotado. Garoava. Vindos de longe, chegavam amortecidos rumores das vozes que conversavam ao redor das mesas.

Sentei-me na cama e olhei para os pertences que Rubi guardava sobre a penteadeira: perfumes, pentes, talcos. Sobre uma secretaria, havia alguns livros e, talvez reminiscência da infância, uma girafa de pelúcia. Estremeci ao perceber a inutilidade de todos esses objetos. Era como estar na sala mortuária de um necrotério, observar os cadáveres sobre as macas, e não saber o que é mais horrível: a certeza de que tais corpos estão fora da vida, ou o irracional medo de que algum dos mortos erga um braço ou talvez irrompa em uma gargalhada. À medida que os minutos passavam, maior era a inércia: nada destroçava o silêncio, tudo permanecia em seu lugar, ora à espreita, ora em vigília.

Quando Rubi sentou-se ao meu lado, observei que o castanho dos seus olhos havia sido recoberto por uma membrana carmesim, de modo que agora assemelhavam-se a terra queimada pelo calor, terra dura e seca, que não pode frutificar, onde nascem apenas raízes mortas, e o som dos passos, quando se pisa uma terra tão árida, é um ruído seco e monótono. E o jeito de rir ainda se relevava perturbador. Rubi ria como se fosse uma garota de oito anos de idade, embora, para além da infância, houvesse um rancor sem remédio. Tenho idade bastante para morrer, já dizia Rubi antes de eu ter fugido pela primeira vez, como se tivesse a esperança de que alguém a salvasse. Mas Rubi nunca desejou ser salva, não durante o tempo em que estivemos juntos. Portanto, é irrelevante o que ela dizia. O que não me sairá da memória são os seus cheiros. Eu lhe beijava a boca sem batom – e às vezes era como beijar uma cicatriz – e, enquanto lhe despia, atentava para o modo como o seu corpo cheirava. Quando enfim a nudez se relevava, Rubi recendia a terra molhada, até o castanho dos seus olhos era povoado por nuvens de tempestade, como se o seu corpo e os seus olhos fossem uma região distante e selvagem, cuja extrema aridez conhece a chuva apenas uma ou duas vez por ano.

Como naquelas noites antes da primeira fuga, Rubi adormeceu com o corpo junto ao meu. Passados alguns minutos – com os músculos frouxos e com a consicência entorpecida por respirar o denso ar que se desprendia da mulher ao meu lado – também adormeci. No primeiro sonho que tive, eu caminhava por uma planície e, apesar do silêncio ao redor, não conseguia me desvencilhar da idéia de que algo muito ruim e violento acabara de acontecer. Então brumas ascenderam à consciência e, quando as imagens recuperaram a limpidez, eu soube-me cinco anos mais jovem, como se eu houvesse regressado no tempo e revivesse antigas noites; quando, deitado na cama, não percebia Rubi perto de mim. Escutava barulhos na cozinha. Caminhava até lá. Rubi vestia apenas uma camiseta que lhe desenhava os seios miúdos. Estava descalça e, ajoelhada, revirava a gaveta dos remédios. Onde estão os calmantes? – perguntava assim que percebia a minha presença, a voz furiosa e pétrea, de modo que eu pensava: uma planície avermelhada e batida pelo sol é sempre um lugar selvagem e maldito. E talvez por isso – por não ter forças para lutar contra algo que pretendia ser um chamado da própria natureza – dava-lhe os remédios. Ela ria(e ao rir trazia sombras de infância para os olhos e para a tristeza) e dizia Eu o amo porque você não se cansa de cuidar de mim. A seguir, enquanto as palavras ainda reverberavam, engolia os comprimidos e voltava para a cama, enquanto eu, parado na cozinha, dizia a mim mesmo que Rubi não acreditava nas palavras ditas por ela. Pois, por mais dolorosas ou belas que sejam, as palavras são sombras, e Rubi apenas acredita no que assume uma existência tangível. E talvez seja essa a sua desgraça; pois a ânsia que julga ter pela vida nunca poderá ser apenas uma vontade, não, essa ânsia se mostrará verdadeira apenas a partir do momento que se traduzir em atos, e as realizações nunca estão à altura do pensamento pelo motivo do homem nunca estar à altura da idéia que cria de si próprio.

Às vezes – e no sonho foi isso o que ocorreu – após ficar imóvel na cozinha por alguns minutos, eu seguia Rubi até o quarto. Deitava-me ao seu lado e observava como a sua respiração pesada era amainada pelo efeitos dos calmantes, como o seu corpo perdia a temperatura e tornava-mais rijo, respirando, agora, a intervalos mais longos. Imaginava o instante em que, no futuro, o sangue deixaria de queimar; o momento em que a rigidez seria tanta que o diafragma não mais se expandiria e não mais se retrairia; e então não seria mais possível beijar a boca sem batom, de um rosa pálido, e observar como a carne ganhava cheiro de terra encharcada e como os olhos era nublados por nuvens de tempestade. Era um pensamento tão doloroso por logo assumir a forma de augúrio; e julgava-me o mais doente dos homens quando, terno, pensava hoje ela quis ser tristeza, hoje ela conseguiu ser tristeza, e eu a ajudei. No instante seguinte, adormecia e o sonho que me subia à consciência também foi um dos sonhos que tive quando, ao reencontrá-la após cinco anos, dormi com o corpo dela junto ao meu: eu acordava sobressaltado; os temporais haviam cessado e o quarto se afundava no cheiro do sangue de Rubi; até as paredes, tão brancas, pareciam tem sido pintadas de escarlate; e a predominância do vermelho era tanta que eu sentia uma pressão crescente sobre as têmporas e a própria visão escurecia; então desmaiava, engolfado por um oceano cor de sangue, pois assim será o dia em que Rubi decidir ser morte e horror.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

garotas

MONIKA

Alegrou-me saber que Monika
estudava agronomia.
É um curso para homens, diria
Lucas, mas eu, ao vê-la
imaginei que os olhos escuros
e que a clara pele afogueada pelo sol
cheirassem a erva e a sementes
e a flores queimadas pelo orvalho
e a terra encharcada pelas chuvas
e a frutos doces e maduros
caídos no chão, quando o cansaço
da terra torna-se um cicio
que é o réquiem dos meses quentes.
No entanto, Monika bocejava
quando a vi pela segunda vez.
Ao perceber-me, ela riu
e foi como se o último dos pássaros
voasse para o norte.
No rosto, o rubor empalidecera
e os olhos escuros estavam rachados
pela aridez e pela exaustão.
Todavia, continua linda – pensei
em silêncio, indagando-me
sobre a hora gloriosa em o que sangue
se incendiaria; chamado
que traria de volta as aves em exílio.
Monika, absorta, praguejava
contra o excel, contra as rutilantes planilhas
que bebem a luz que é apenas percebida
após ter estiolado a si própria.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Poema

TALVEZ, UM EPIGRAMA

Derrotaram-me as chagas
e o desdém das mulheres:
causou repulsa a carne
e meus olhos vazados
foram como os de um cego
que esmola pelas ruas.

O desejo é um cão,
ou um sol, ou morto
a se nutrir dos vermes
que lhe entram pela boca.

domingo, 18 de janeiro de 2009

trecho

Cansado das perguntas, Oklahoma deixou que o pensamento voasse para idéias mais agradáveis. Evocou Steinbeck, Ratos e Homens, relatos sobre a depressão dos anos 30. Havia beleza e, mais do que isso, havia dignidade na miséria exposta em tais narrativas. Como se as estradas e as paisagens por onde aqueles homens perambulavam em busca de trabalho compusessem um cenário que, para além de todo o horror, comportava esperança e novidade. E os homens que protagonizavam essas narrativas também pareciam guardar essa crença na esperança e no novo. Eram, por assim dizer, homens ideais caminhando por uma terra ideal, e era a bravura desses homens e a pureza dessa luz que Oklahoma ansiava quando formulara, a si próprio, o desejo de caminhar sob o sol e ser igual a todos. Mas o que Oklahoma julgava ter existido antes (em outro lugar, com outros indivíduos) era uma mentira; ele sempre soubera disso, mas havia tanta beleza nessa farsa que Oklahoma optara por manter a fé em algo que nunca acontecera. E por um momento – no começo de suas preparações para os concursos, logo após a conclusão do romance – acreditou que este poderia ser um Deus que seguiria e que nunca morreria: o Deus da Mentira Vital, ou seja, o Deus que o protegeria de toda a verdade sobre a mesquinharia existente em si próprio e também nos outros, o Deus que o manteria um homem belo e forte entre homens igualmente fortes e belos. Mas – agora percebia isso todas as manhãs – aquele que se revelera como um Messias não era mais do que um falso profeta; de modo que Oklahoma, à medida que se fundia à massa humana que o cercava, mais se fundia ao triste cheiro que vinha dos outros candidatos. Para onde quer que ele olhasse, enxergava desespero, avidez, egoísmo, a disposição de vender-se e de traparecear por qualquer quinquilharia.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Poema

Aqui me achei gastando uns tristes dias
Camões, Canção IX

Leio sobre salgueiros,
auroras boreais,
flores de muitos nomes
e oceanos bravios –
tudo tão estrangeiro
à feiúra da qual
não posso me apartar.

Pois eis o que conheço:
comércios miseráveis,
indústrias em ruínas,
cadáveres de animais
ao sol, céu poeirento,
capim, pedras de fogo
e jardins destruídos.

Às vezes, tal feiúra
quase desaparece
e o que vejo, nas ruas,
são lindas raparigas –
vejo seus rostos claros
batidos pelo sol
e mais: ouço alegria
em suas vozes, sinto
que a luz que por seus corpos
brinca, tão irisada,
é a mesma luz que esgota
os rios que são seus olhos
enquanto segue o fluxo
dos dias sem história.

E tal feiúra, digo,
já vi se transmudar
em tardes violetas
escarlates, douradas.
Já vi as nuvens baixas
e já vi o alto céu
rebentar e lançar
abismos e vertigens:

Não são deuses que morrem
ou sangram, ou ofertam
o que não será nosso.
É somente a feiúra –
não há êxtase, não
há luz que dure mais
do que um dia de sol.
No entanto, é aqui
que devo persistir;
é aqui, na feiúra,
que essa luz tão impura
haverá de queimar.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Poema

1 de Janeiro - Apontamentos

Raiva, raiva contra o morrer da luz

Dylan Thomas


1.

Bombas estouram sobre a cidade
e nós aqui: apartados de todo o resto
em desterro ou talvez em fuga.

O amor também pode ser quietude
e medo e ternura – enfim, uma alegria
que incendeia a si própria
e que talvez não renasça.

2.

Observo Margot. Ela tem olhos alegres
e agita fitas amarelas e roxas
para a euforia do gato pequeno.
Entre uma risada e outra, ela
ergue o rosto afogueado e pergunta
Por que ele cresce?
(embora o que eu entenda seja
Por que ele morre?)

Mais bombas explodem. No cômodo ao lado
ouço vozes ao redor da mesa.
É terrível que todos ainda estejam vivos
e que Margot ainda brinque e que
o gato pequeno ainda seja pequeno:

Tanto lixo haverá de vir
e se o silêncio não soterrar as nossas vozes
haverá de mudá-las em um murmúrio
que se esbaterá como a fraturada luz
antes de se romper.