quarta-feira, 30 de março de 2011

Envelhecer

Existirá a cidade
até que a última casa
soçobre como se ao mar
fosse lançada a planície.


Ante a mudança, o espanto
e o espanto ainda maior
pelo que é permanência –
paredes que o bolor não


esboroou, coração
não cindido pela mágoa.
Ao poente e ao luar
a mente cansada voa


e os olhos, esmaecidos,
são ainda peixes rápidos
em águas que a claridade
é a afogada raiz


que ainda lampeja – clarões
da memória intocada
pois talvez envelhecer
seja aqui continuar.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Sentimento

No breu que recrudesce
há jardins em ruínas,
negros entre os arvoredos
e um apetite canino.


Do prédio que se fecha
saem rostos pisados
por verbos repetidos:
acordar, caminhar.


Tenho lama nas barras
da calça e um vapor
de tabaco soma-se
à treva gotejante.


O néon é luar
vermelho, liquefeito,
disperso na sarjeta
como raiz convulsa


na quadra fértil do ano –
raso sopro que o tempo
tem para germinar
os cabelos dos mortos.


Chove e o mais doído
é o fim do aguaceiro:
sujo bafio dos becos
quando finda o dilúvio.


A umidade que resta
(e que ainda goteja)
é a água estragada
e os seus podres perfumes:


casas esboroadas,
resto azedo do almoço,
grosso fedor dos cães
que no quintal secaram.


Um quarto é uma fuga
mas nenhuma fuga é
coração estanque,
sem sangue nas paredes.

terça-feira, 1 de março de 2011

Juventude II (Canção)

Porque o coração
dói como animal
que pouco se move.


Cresce em sua sombra
escuro murmúrio
e musgo que abril


apenas germina
em manhãs esparsas,
ocas como a brisa


em dias sem mortes
que o ocaso margeiam.
Vênus é fagulha


da fundura vinda
do corpo exaltado
e quente. Beleza


imorredoura é
igual à vindoura
em cada regresso


e o que um dia cai
cai todos os dias.
Conheço este céu,


sei a cor dos teus
olhos e recolho
o que fica à margem


do tempo: cordões
do cabelo que
jovem tu me deste.