domingo, 22 de novembro de 2009

poema

BREVE PENSAMENTO SOBRE ENVELHECER


Talvez a velhice seja a idade
na qual somem todos os privilégios.
A beleza ainda existe, mas agora
é chaga que se abre no coração –
e o sangue que sai, de um vemelho opaco,
é memória confusa e amedrontada
é o repetir de uma melodia
que a cada hora mais se torna estranha
(como se entoada num dialeto
agora alienígena, mas que antes
vibrou como língua por demais bárbara
ou por demais clara: o verbo antes
da sombra do inexpresso; o amor antes
do medo de nada valer; e a luz
antes de descobrir que é fecundada
por olhos mortais, por corpos exaustos,
por estrela antiga e já agonizante).

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

início de um conto

"É como retornar a uma corrompida idéia de alegria" - pensou Antoine, quando a estrada começou a descer e a cidade surgiu, baixa e fumegante, espalhada por toda a linha do horizonte. Acima do carro, o céu era de um azul mais do que esmaecido: era um azul ameaçado pelas nuvens que, de tão maciças, pareciam contrariar todas as leis naturais (as nuvens mais próximas eram ofuscantes como mármore refletindo o sol, e as mais longínquas assumiam uma tonalidade fosca, um matiz que lembrava enferrujadas carcaças de metal em pátios abandonados). Dentro do carro, e porque todas as janelas estavam abertas, o vento que entrava era um sopro incandescente e selvagem contra os rostos e os cabelos de todos os que viajavam: o já mencionado Antoine, homem de trinta anos de idade, magro, dentes arreganhados contra a luz e os ventos, de modo que o seu semblante era uma careta que parecia soma de espasmos musculares tidos durante algum pesadelo tão intenso quanto vago; uma mulher de esvoaçantes cabelos loiros, óculos de lente escura, rosto ungido por fina e reluzente camada de suor, e uma camiseta que deixava à mostra os ombros claros, ossudos, e, ainda assim, sensuais na exata medida em que preservavam sinais de uma juventude para sempre ultrapassada; e, no banco de trás do veículo, adormecida, uma criança de seis ou sete meses de idade, cabelos de um castanho claro que, de tão finos, não eram mais do que uma penugem, e a pele lambuzada por branco e perfumado protetor solar.

Algumas centenas de metro adiante o sol se escondeu por trás das nuvens cor de chumbo e o que caiu, sobre a estrada, foi uma sombra também plúmbea, a qual tornava mais forte o cheiro dos canaviais queimados – um cheiro que, somado ao calor, transcendia o seu estado gasoso, dando origem a um mormaço tão úmido quanto sólido.

"Então é aqui?" – a voz da mulher soou como se fosse mais uma manifestação do vento e do calor, pois os sons sumiram logo a seguir, sem deixar eco, algo como o fantasmagórico ruído de uma peça de madeira estalando durante a noite.

"Sim, é aqui" – respondeu Antoine, que, talvez por descuido ou talvez por encantamento, permaneceu com a boca semi-aberta após a formular a resposta: agora, mais do que nunca, tinha os dentes arreganhados contra a luz e os ventos; os olhos, em contrapartida, estavam cerrados como se ele quisesse fitar, na linha do horizonte, uma distância impossível de ser alcançada por olhos humanos. Pela primeira vez no dia, havia alguma doçura no cheiro dos canaviais queimados – e este olor tão doce e enjoativo, à medida que se aproximava o crepúsculo, apenas aumentaria e depois, como se tivesse atingido o esgotamento, sumiria; deixando, na noite, o ardente perfume de mato, flores selvagens, animais despertos e ariscos. Enquanto tudo isso acontecia, dentro do carro, o cheiro mais forte passou a ser o de carne cansada, indefesa. Antoine olhou para o lado. Olhou para a esposa que, pela primeira vez durante a viagem, tirava os óculos de lente escura. Ela tinha o rosto ungido pelo suor e queimado pelo sol que, durante a tarde inteira, caíra sobre o carro. Apenas ao redor dos olhos a pele mantinha-se clara, de uma brancura que, Antoine sabia, simbolizava uma impossível pureza (e, no centro dessa impossível pureza, tremeluziam dois olhos claros e assustados). Antoine, enlevado, quis beijar a fronte da mulher: em vez disse, apenas sorriu, ou seja, tentou conferir alguma ternura aos seus dentes arreganhados.

"Sim, é aqui" – repetiu após o sorriso, a voz quase inaudível. A seguir, olhou para a mulher e depois para a criança adormecida. "É a minha família", pensou, e lembrou-se de alegres tardes junto com os pais, alegres tardes vividas na cidade a que retornava. E lembrar dessa alegria o deixou melancólico, como se toda a alegria o lembrasse de algo que nunca deveria ser lembrado, algo que nunca deveria ser uma verdade.

sábado, 14 de novembro de 2009

poema

A noite antes do dia dos mortos
começa cruel: o ar é chicote
de silêncio, tédio, raiva, tristeza;
como se o que é vazio e ausente
elétrico se tornasse, e assim
impulsionasse as pessoas e os carros
em muitos passeios pela cidade –
corpos que se esgotam em catedrais,
ou em parcos banquetes, ou em buscas
pelo que também respira, e queima,
e pranteia, e perverte, e adora,
e delira ante a falhada pureza
que nos pântanos de outros corações
encontra, como se o estrelado céu
também conseguisse existir em tudo
o que o imita: luzes da cidade,
olhos enamorados, mar sem ondas
e em cujas águas adejam vestígios
de alegria náufraga e irreal.

A noite antes do dia dos mortos
magoa apenas os mortos futuros.
Os mortos em cujo sangue cintila
muito mais do que amor: medo, e muito
mais do que medo: urgência, pulsão,
o desejo de ter os pés na terra
e não cair: estar aqui, estar
entre o que imita a beleza, e o amor,
e a coragem, e o que parece eterno –
claro rosto de deus, rubra linhagem;
a carne que deixa de ser poeira
ao frutificar, ao tirar do sangue
outros mortos futuros, outros cérebros
rachados entre o ser mortal e o ser
imitação de um júbilo perene,
de um rosto bondoso e nunca encontrado,
de pai forte e filho mais forte ainda.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

mildred foi mesmo embora

ÚLTIMO POEMA PARA A TRISTEZA DE MILDRED

Como dizer que a sua tristeza
é o poema que desejo escrever?
Até sobre a sua alegria sei pouco.
Eu só a conheço debaixo do sol:
não sei se os seus olhos, castanhos,
continuam castanhos quando chove
ou se escurecem como os olhos
de uma mulher que amei certa vez.
Também nunca a vi dormindo;
não sei como a primeira luz da manhã
desliza sobre o seu rosto
e também não sei se essa mesma luz
faz o castanho dos seus olhos
brilhar como mel refletindo o sol.
Tampouco sei o gosto de seus beijos
e nunca ouvi as canções que você ouve
quando se descobre enamorada.
Conheço apenas o seu riso
e como o sol, no rigor do meio-dia,
enrodilha-se em seus cabelos ruivos.
Uma vez você disse estar triste
mas a tristeza me pareceu timidez
e tímido eu não soube ir além
de seus olhos, seu pudor, sua tristeza.
Tampouco sei o que é amar
durante o tênue mês de maio.
Foi em novembro que tive
aquela guria cujo azul dos olhos
se acizentava nas tardes de chuva.
Após ela pensei que você seria a mulher
que um homem tem após aprender
a amar e a perder o que ama.
Mas tão distantes nos mantivemos
e no entanto ainda há um resto de luz:
com essa luz invento a sua tristeza
(contempla a minha inútil ternura!)
e sob essa luz (luz que predece o inverno)
vou percebendo qual é a chaga de sentir
dentro do próprio peito um fruto
maduro e ainda não colhido.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

por onde anda mildred?

PRIMEIRO POEMA PARA O SORRISO DE MILDRED

Como dizer que amo
o sol que arde atrás do seu rosto?
Não a conheço. Nada sei
sobre a sua tristeza,
sobre o seu coração magoado,
sobre os mortos que enterrou
e os corpos que não pode mais amar.
Olho-a e sei apenas de mim:
amei e fui amado
por mulheres imensamente tristes;
eu as abracei e o que ofereci
foi a minha fraqueza.
Agora sei que sou apenas um homem
e se a vejo, sei que é apenas uma mulher
mas também sei do sol,
do seu modo de rir, da sua juventude,
das flores que gosta de colher
e que para o seu coração tão indefeso
amar um corpo ou amar uma alma
traz a mesma alegria.
Por isso a quero,
porque o seu rosto é o sol,
porque a sua alma é um véu de luz,
porque o seu corpo é uma orquídea que se abre
e depois adormece ao relento.