quarta-feira, 18 de novembro de 2009

início de um conto

"É como retornar a uma corrompida idéia de alegria" - pensou Antoine, quando a estrada começou a descer e a cidade surgiu, baixa e fumegante, espalhada por toda a linha do horizonte. Acima do carro, o céu era de um azul mais do que esmaecido: era um azul ameaçado pelas nuvens que, de tão maciças, pareciam contrariar todas as leis naturais (as nuvens mais próximas eram ofuscantes como mármore refletindo o sol, e as mais longínquas assumiam uma tonalidade fosca, um matiz que lembrava enferrujadas carcaças de metal em pátios abandonados). Dentro do carro, e porque todas as janelas estavam abertas, o vento que entrava era um sopro incandescente e selvagem contra os rostos e os cabelos de todos os que viajavam: o já mencionado Antoine, homem de trinta anos de idade, magro, dentes arreganhados contra a luz e os ventos, de modo que o seu semblante era uma careta que parecia soma de espasmos musculares tidos durante algum pesadelo tão intenso quanto vago; uma mulher de esvoaçantes cabelos loiros, óculos de lente escura, rosto ungido por fina e reluzente camada de suor, e uma camiseta que deixava à mostra os ombros claros, ossudos, e, ainda assim, sensuais na exata medida em que preservavam sinais de uma juventude para sempre ultrapassada; e, no banco de trás do veículo, adormecida, uma criança de seis ou sete meses de idade, cabelos de um castanho claro que, de tão finos, não eram mais do que uma penugem, e a pele lambuzada por branco e perfumado protetor solar.

Algumas centenas de metro adiante o sol se escondeu por trás das nuvens cor de chumbo e o que caiu, sobre a estrada, foi uma sombra também plúmbea, a qual tornava mais forte o cheiro dos canaviais queimados – um cheiro que, somado ao calor, transcendia o seu estado gasoso, dando origem a um mormaço tão úmido quanto sólido.

"Então é aqui?" – a voz da mulher soou como se fosse mais uma manifestação do vento e do calor, pois os sons sumiram logo a seguir, sem deixar eco, algo como o fantasmagórico ruído de uma peça de madeira estalando durante a noite.

"Sim, é aqui" – respondeu Antoine, que, talvez por descuido ou talvez por encantamento, permaneceu com a boca semi-aberta após a formular a resposta: agora, mais do que nunca, tinha os dentes arreganhados contra a luz e os ventos; os olhos, em contrapartida, estavam cerrados como se ele quisesse fitar, na linha do horizonte, uma distância impossível de ser alcançada por olhos humanos. Pela primeira vez no dia, havia alguma doçura no cheiro dos canaviais queimados – e este olor tão doce e enjoativo, à medida que se aproximava o crepúsculo, apenas aumentaria e depois, como se tivesse atingido o esgotamento, sumiria; deixando, na noite, o ardente perfume de mato, flores selvagens, animais despertos e ariscos. Enquanto tudo isso acontecia, dentro do carro, o cheiro mais forte passou a ser o de carne cansada, indefesa. Antoine olhou para o lado. Olhou para a esposa que, pela primeira vez durante a viagem, tirava os óculos de lente escura. Ela tinha o rosto ungido pelo suor e queimado pelo sol que, durante a tarde inteira, caíra sobre o carro. Apenas ao redor dos olhos a pele mantinha-se clara, de uma brancura que, Antoine sabia, simbolizava uma impossível pureza (e, no centro dessa impossível pureza, tremeluziam dois olhos claros e assustados). Antoine, enlevado, quis beijar a fronte da mulher: em vez disse, apenas sorriu, ou seja, tentou conferir alguma ternura aos seus dentes arreganhados.

"Sim, é aqui" – repetiu após o sorriso, a voz quase inaudível. A seguir, olhou para a mulher e depois para a criança adormecida. "É a minha família", pensou, e lembrou-se de alegres tardes junto com os pais, alegres tardes vividas na cidade a que retornava. E lembrar dessa alegria o deixou melancólico, como se toda a alegria o lembrasse de algo que nunca deveria ser lembrado, algo que nunca deveria ser uma verdade.

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