terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Trecho (Zanzi Bar)

Eu nunca bebi um bom drink no Zanzi Bar, que também não é um lugar de boas mulheres. Ainda assim, a cada três ou quatro meses, eu e todos os integrantes de nosso pequeno grupo para lá retornamos com os corações renovados por generosas expecativas. O motivo de tantos retornos é simples, melancólico: não é fácil viver por essas plagas e não é todo mês que é possível dirigir por quatro horas até a capital. Nessas ocasiões hospedamo-nos na casa de Illinois, que, embora viva distante desde o início da vida adulta, também nasceu no nosso pequeno vilarejo. De todo modo, seja na metrópole ou nos pântanos que nos serviram de cenário para a infância, o objetivo é gastar algumas noites de sábado entre luzes faiscantes, bebidas preparadas com esmero e raparigas que sabem se maquiar. Sursum corda!, eu também poderia gritar sobre o que nos tirava da inércia, sem estar errado.


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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Paizinho, Paizinho (trecho)

Ainda espero por Vladimir, disse o velho e então voltou os olhos na direção do portão aberto para a pequena rua tranversal à entrada da igreja. Uma rua tão quieta que não existia, ali, uma natural fluidez regendo a alternância entre silêncio e barulho. Era como habitar um planeta vazio até que algo rachasse, quebrando a espinha dorsal de uma gigantesca mudez, e, ainda assim, este rumor clandestino nunca era distinguido com clareza: um murmúrio que bem poderia ser o vento sobre as árvores podia se revelar como o ecoar de passos sobre a rua seca. Nessa vertigem as tardes declinavam até que um novo ponto de inércia fosse alcançado: a fraturada abóbada de silêncio deixava passar um único sussurro tão logo a luz começava a esmorecer. Era o invisível e fantasmagórico farfalhar das asas dos pardais que, organizados em grupos, invadiam as copas das árvores que ocupam a praça defronte à igreja.


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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Holiday Blues (trecho)

A manutenção da felicidade: esta era uma das maiores preocupações de Anthony nas semanas que precederam o casamento, talvez porque houvesse a suspeita de que, em algum momento, a vida perderia mais do que o seu centro – perderia a dádiva de se ligar ao centro de outras existências, que era a única forma de alegria e comunhão que lhe pareciam possíveis. E essa possibilidade de conexão com outros centros era muitas vezes comparada por Anthony com o que os cientistas convencionaram chamar de matéria escura, ou seja, algo como uma cola primordial, cujo único efeito conhecido é manter a coesão entre os bilhões de aglomerados de galáxias existentes. No entanto também é especulado pelos cientistas, e também isso era do conhecimento de Anthony, que, em oposição à matéria escura, há no universo uma outra força ainda mais inexplicável, e inexplicável porque atua em completa oposição à matéria escura. A combinação entre esses dois fenômenos pode ser explicado com a imagem de um cabo de força tão antigo quanto derradeiro, e o mais desolador, ainda especulam os cientistas, é que ao final as forças desagregadoras irão prevalecer. Soltos no espaço, os aglomerados de galáxias se afastarão para as longínquas periferias do cosmo, a príncio dispersas uma das outras, depois se dispersando em si mesmas, até que o espaço não seja mais do que uma última onda de poeira cósmica lançada para fora enquanto no centro vige um negror absoluto.

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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Um Homem Deseja Ir, Um Homem Deseja Voltar

Tantas vezes coube o céu em meus olhos
que o próprio céu se mudou em raiz
saída da fundura mais doída.
Entrava nova estação e eu sabia
que luar a cingiria e qual fogaréu
traria as cinzas do dia futuro.
Era belo, mas também magoava
e deste encanto onde cantos eu
buscava vinham a idéia de que Ítaca
era minha e era o que me bastava.
Em Ítaca, mar e céu são inteiros.


Mas Ítaca não existe se não
existe casa para trás deixada.
Preciso é que a distância se desdobre
não em algo maior ou nunca visto
mas em algo que o sangue não conheça
como seu, ainda que imagens gêmeas
sejam dos muitos dias repetidos.
Eis o luar, e o lusco fusco,
e a luz embebida em luz, fogo leve,
não diferente da brandura de abril
embora lá fosse a agonia de setembro.


Um mundo multiplicado em espelhos
é imenso ou é repetição?
Longe, encontrei beleza daqui
diversa, mas o que me aturdiu
é que o pólen de todo o coração
é soprado por um único deus
ou é vestígio de única ruína.
Longe, outras ítacas encontrei
e quanto mais eu as tornava minhas
mais a casa deixada para trás
era dor que ia do branco ao vermelho.