domingo, 25 de julho de 2010

Débora

Tantas vezes olhei Debóra:
o cansaço, em seus olhos,
surgia-me como a terra
em dura estação, cujo espólio
bate a agonia de raízes.

Pois Débora, ao final
do dia ainda lancina -
o corpo, eco animal,
pede o luar que cintila
e que as muitas matizes

do que é moreno o dourado
alcancem: fulgor vermelho
da aurora, coroado
e bruto lume, espelho
de olhos feito chafarizes.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Poema

Como os mortos, estou nas trevas
e mantenho os olhos abertos
como alguns mortos persistentes.
Então respiro, e isso eu sei
que os cadáveres não fazem.
Respiro e sinto afundar-me
na insônia mais espessa.


Com as retinas abertas pela noite
é possível escutar tudo o que reverbera.
Um cão ladra. A madeira dos móveis estala.
Há o constante motor das máquinas.
Há o mofo ou apenas a umidade
que se desprende das paredes como
uma ameaça ou uma carícia.


Acendo as luzes. Ergo-me na cama
e o tempo se reconstrói
com a nitidez, com a dureza
que não existe nas horas de trabalho.
Alguém dirá "longe, há quem morra agora"
e não será mentira. Outro dirá
(e também não será mentira)
"longe, a carne convulsiona
e arrefece batida pelo próprio gozo".


Mas o que importa o que é alheio
quando as horas tentam escapar de ser fóssil
ao serem rasgadas por relâmpago de luz elétrica?
Sentado à beira da cama, olho para o chão.
Meus pés me parecem mais sanguíneos,
mais inchados e disformes do que me lembrava.
Talvez isso aconteça porque o não dormir
é ligar-se a uma imagem primeira de corpo
e não mais olhar para si próprio.
Mas a insônia é mais do que o não dormir.
A insônia é o estar preso entre as penumbras
e as luzes súbitas, preso ao hiato entre
evocar o real e confrontar o real.


Ando pela casa. Na sala descubro um rumor d'água
e observo o aquário de brilho escarlate.
O peixe nada em agonia por que o horizonte repete-se
ou por que o oxigênio está mais escasso?
Sem compreender, olho para o peixe
e olho para as paredes em redor.
Sei onde estou porque é onde sempre estive.
Sei onde estou porque aqui é a casa
onde todos nós sempre estivemos e onde
um dia não mais poderemos estar.
E é a casa – não os móveis, não o peixe,
não a voz aquosa e rubra dentro da madrugada –
o que escuto com mais clareza
e o que escuto é
a casa é algo que vai terminar,
o corpo é algo que vai terminar,
a noite é algo que vai terminar,
estar aqui é algo que vai terminar.


Retorno ao quarto. Ao frêmito doméstico
soma-se o ecoar dos meus passos.
Estou nas trevas novamente.
Os olhos estão abertos.
O coração está coroado de sangue.
Por entre as mofadas nervuras das paredes
há o tempo e por vezes o tempo
é um rio vermelho, infindável, a rumorejar
como se fluísse entre as minhas próprias veias.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Poema

O céu era permanência negra.
Sem deixar eco ou memória
o sono desmanchava o tempo
e o que restava, vento exíguo,
sumia na plúmbea penumbra
do recomeço das horas.
Fora do sonho, o primeiro rumor
foi brisa de orla úmida
a descer do céu sem peso
e a tornar pesadas
árvores de pálido verdor
habituadas apenas ao orvalho.
Da terra, o arquejar longo
e molhado foi o próximo cheiro:
durou pouco, e quando acabou
foi como se não tivesse existido.
Acima dos telhados, esbatido,
o luar era suja, brônzea distorção.
Cá embaixo, nem sequer os cães
tiveram o sono violado
ou limpas as gargantas.
Desperta, uma mulher. A pele
suja e castanha como o luar
embora, para a mulher, a sujeira
fosse resquício do último abraço
e o ofegar castanho, horizontal,
fosse  o exílio do suor
a cintilar na cinza penumbra.
Triste reencontrá-la hoje, no estio
dos amarelos dias de inverno.
As árvores de pálido verdor
são agora esqueletos, são agora
os magros embriões do porvir.
Da terra, o frêmito que sobe
foi decantado a ponto
de imitar o canto do avô morto
para nada ser no instante seguinte.
O luar, cingido por anéis de poeira,
é de um vermelho gasto como
sangue diluído em leite.
A mulher, hoje sonolenta,
tem os olhos presos à paisagem
e a pele ainda brônzea
e cansada como algo
que chama – voz lúbrica –
até queimar o próprio chamado
(como sereia que vai ao areal
nada encontra e morre ao relento,
a carne fustigada e salgada).
Cai a sombra violácea da noite
e sobe a rubra sombra do luar.
"São noites de pouco sono
e de tanto que dói para respirar
ontem coloquei sangue pelo nariz" -
diz a mulher, cujo olhos
são vitrais a guardarem o duro lume
do rosto que se tornou mais forte
do que o luar que se estiola
para além das vidraças.