sexta-feira, 2 de julho de 2010

Poema

O céu era permanência negra.
Sem deixar eco ou memória
o sono desmanchava o tempo
e o que restava, vento exíguo,
sumia na plúmbea penumbra
do recomeço das horas.
Fora do sonho, o primeiro rumor
foi brisa de orla úmida
a descer do céu sem peso
e a tornar pesadas
árvores de pálido verdor
habituadas apenas ao orvalho.
Da terra, o arquejar longo
e molhado foi o próximo cheiro:
durou pouco, e quando acabou
foi como se não tivesse existido.
Acima dos telhados, esbatido,
o luar era suja, brônzea distorção.
Cá embaixo, nem sequer os cães
tiveram o sono violado
ou limpas as gargantas.
Desperta, uma mulher. A pele
suja e castanha como o luar
embora, para a mulher, a sujeira
fosse resquício do último abraço
e o ofegar castanho, horizontal,
fosse  o exílio do suor
a cintilar na cinza penumbra.
Triste reencontrá-la hoje, no estio
dos amarelos dias de inverno.
As árvores de pálido verdor
são agora esqueletos, são agora
os magros embriões do porvir.
Da terra, o frêmito que sobe
foi decantado a ponto
de imitar o canto do avô morto
para nada ser no instante seguinte.
O luar, cingido por anéis de poeira,
é de um vermelho gasto como
sangue diluído em leite.
A mulher, hoje sonolenta,
tem os olhos presos à paisagem
e a pele ainda brônzea
e cansada como algo
que chama – voz lúbrica –
até queimar o próprio chamado
(como sereia que vai ao areal
nada encontra e morre ao relento,
a carne fustigada e salgada).
Cai a sombra violácea da noite
e sobe a rubra sombra do luar.
"São noites de pouco sono
e de tanto que dói para respirar
ontem coloquei sangue pelo nariz" -
diz a mulher, cujo olhos
são vitrais a guardarem o duro lume
do rosto que se tornou mais forte
do que o luar que se estiola
para além das vidraças.

3 comentários:

  1. Daniel: já que desististe do letras no teclado, será que eu posso colocar lá, de vez em quando, um poema teu?
    O teu livro aqui publicado está muito bom- eu já conhgecia, creio, yodos os poemas, mas gostei imenso de voltar a lê-los.

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  2. De facto muito, muito bom, esta cidade estranha e estas mulheres. Parabéns.

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  3. Amélia, Joana

    Agradeço a visita e os elogios.

    Sim, Amélia, pode colocar qualquer poema meu no blog ou na lista.

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