terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Blow Up

Pedro sofreu o acidente que o deixou coxo em dezembro, e a sua esposa, se me recordo bem, teve machucados ainda mais horríveis. Portanto o natal foi pouco comemorado: após uma ceia breve e saudações à meia-noite, todos foram dormir. Eu estava sem sono e pensei em pegar o carro e dar uma volta pela cidade, talvez ir até o Radio City.

Na tarde seguinte liguei para um amigo e combinamos de nos encontrar no salão de bilhar. Assim que iniciamos a disputa, começou a chover. Junto ao balcão, o homem que administrava o lugar jogava um estranho jogo de cartas com outro sujeito. Às vezes esse outro sujeito gritava. Perto deles, comendo de um prato que recendia a gordura antiga, estava sentada uma adolescente – rosto claro ungido pelo suor e pela gordura que se emanava da chapa de grelhar hambúrgueres, os seios salientes (talvez engordurados também) sob o fino tecido da blusa, cabelos à altura do pescoço. À medida que a chuva ficava mais forte, a madeira dos tacos tornava-se pegajosa e não conseguimos nos divertir. Antes do crepúsculo eu já tinha voltado para casa e, quando a noite se insinuou e parou de chover, veio, dos fundos do quintal, um cheiro de bananeiras molhadas.

Nos dias que se seguiram, eu e Cartago voltamos a perambular pela cidade velha. As lojas – após a alegria natalina – estavam todas fechadas. A prefeitura ainda não tinha dado início aos trabalhos de limpeza, e as ruas encontravam-se atulhadas de papel picado e jornais de propaganda. Chovia forte quase todas as tardes, mas depois vinha o sol, e ascendia um mormaço doente e preguiçoso. A impressão que se tinha era de que a água estava estagnada há não sei quantas semanas e por isso apodrecera.

Na última tarde do ano também vagamos pelo centro: primeiro uma caminhada pelas ruas quietas e ensolaradas (aqui e ali explodiam bombas, e ao mormaço fundia-se o cheiro de pólvora), depois algumas partidas no salão de bilhar e por fim uma visita ao shopping, que tinha todas as lojas fechadas e, na praça de alimentação, as cadeiras empilhadas. Era a última sessão de cinema do ano e havia poucas pessoas na sala de exibição. Sentámo-nos e, enquanto esperávamos o filme, vimos chegar um grupo formado por uma mulher e duas raparigas de quinze ou dezesseis anos. As meninas não pareciam ser irmãs ou primas – o tom da pele, a cor dos cabelos, os ossos do rosto, as sombras ao redor dos olhos, os gestos: nada indicava parentesco e o único aspecto que tinham em comum era uma magreza desengonçada (era como se o silêncio e a melancolia – uma tristeza apenas adivinhada, apenas imaginada – tornassem o ar mais espesso ou rarefeito; como se as duas meninas, ou melhor, como se os seus dois corpos magros ainda não estivessem acostumados a variações na densidade das horas).

Quando saímos do cinema e ganhamos a rua, o crepúsculo ia pela metade. Tinha sido uma tarde sem chuvas e um sopro quente varria os papéis e as copas das árvores. Bombas ainda explodiam aqui e ali (agora com mais frequência). Do alto dos postes descia uma luz que, misturada à poeira do entardecer, assumia um tom alaranjando, enquanto o céu poente oscilava entre matizes pálidos e de um azul muito escuro. Por quase uma quadra, a mulher e as meninas caminharam diante de nós, e durante todo o tempo tivemos a impressão (agora também em relação à mulher) de magreza destroçada, aniquilada. Era como olhar para o retrato de alguém – um retrato tirado durante um momento de introspecção – e adivinhar uma morte triste, talvez por suicídio.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Tribunal: Augusto

AUGUSTO


Se a Augusto, que nunca teve o hábito da leitura,
fosse incumbida a magna e dolorosa tarefa
de gravar nas portas de mármore do tribunal
(embora a sede do tribunal de nosso burgo
não seja mais do que uma creche abandonada)
o que é a justiça dos homens (afinal, Augusto
serviu esta casa por quarenta anos)
ele provavelmente olharia para o próprio coração
e apenas diria Por aqui ter entrado
aqui deixei toda a minha esperança.
Feito esse trabalho, uma sombra de silêncio
cairia sobre Augusto, que então evocaria
os seu idos dias enquanto diretor
e por que motivos mesquinhos perdeu o cargo:
deixou de mandar à incineração
os papéis que deveriam ser incinerados.
Por mais de um ano os processos
ficaram nos fundos do tribunal, expostos
à chuva e ao sol, exalando um nauseante cheiro
de bolor até que a sorte de Augusto foi selada
por um cadáver de rato ali encontrado.
Mas os ratos tomaram conta deste prédio
há décadas. Eles estão em todas as sombras -
ainda argumentou o pobre
à magistrada que lhe tirou o poder.
Isto, é verdade, aconteceu há muitos anos
e por muitos anos Augusto continuou a servir
à lei e aos magistrados.
Não havia sequer um dia que, magoado,
deixava de maldizer os ratos que haviam sido
a sua ruína. E assim ferido, Augusto,
continuava a perseguir as belas advogadas
e jovens prepostas que sequer conseguira ter
quando se julgava poderoso.
Estes os últimos dias de Augusto no tribunal
e se a ele fosse incumbida a tarefa
de dizer o que pode acontecer a um homem
teríamos então o mais próximo relato
do que Napoleão sofreu na ilha de Santa Helena.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Tribunal: dois poemas iniciais.

DOUTOR PAULO ABRANCHES




2011 não foi um bom ano para o Doutor Paulo Abranches.
Ainda em Março, a sua casa
foi invadida por homens armados.
Durante o seu depoimento, enquanto vítima,
o Doutor Abranches foi mil vezes mais eloquente e preciso
do que enquanto advogado.
Agosto veio, e um estio terrível
passou a lhe sufocar durante o sono
e ele então acordava e com os olhos
mal habituados às trevas mirava
as formas cambiantes que eram o corpo de sua velha mulher
e os móveis e as roupas ao redor, fantasmagóricos.
Esperava então pelo murmúrio, o calmo sussurro
da chuva fina que começa alta noite
e invade a manhã - brisa gotejante
a cair dos beirais dos telhados e do alto das árvores.
Em Outubro, às primeiras tempestades,
foi novamente vitimado por homens armados:
acertaram-no o intestino, mas o que o matou
foi a infecção que atacou os pulmões.
Naquelas noites, igual em Agosto,
acordava sufocado, com os olhos
que agora eram flores devolvidas pelas sombras
e escutava a fina chuva que caía lá fora
e sabia que já não apenas o desejo
havia o abandonado (tanta coisa
perde um homem antes de perder tudo).
No dia de seu funeral, como é comum
em nossa pequena cidade, um carro com alto-falantes
percorreu lento as ruas, reverberando um clarim fúnebre
e isto era, apenas isto era o dobrar dos sinos
por aqueles levados no barco de Caronte.
Após ecoar o áspero clarim, uma voz também áspera
informava que o Doutor Paulo Abranches estava morto
e que deixava uma mulher outrora bela.


DOUTOR JUSTINO


O Doutor Justino - melhor amigo do Doutor Abranches -
ficou de tal modo ferido pelo acontecido
que no dia seguinte à ida de seu companheiro às raízes
permitiu que um acusado a quem fora incubida a defesa
fosse condenado sem a observância do processo legal.
Na noite seguinte, a insônia que recaiu
sobre o Doutor Justino foi por ele próprio
reconhecida como vã e, no entanto, o que tanto pungia
o seu peito magoado?
Era o amigo morto
ou o ladrão mal defendido?
Levantou-se com a esperança de que um copo de conhaque
devolvesse o sono perdido.
Entre um gole e outro evocava
os ladrões crucificados ao lado de Cristo.
O Doutor Justino bem sabia, amargo,
que a história dos dias é a história
de homens que morrem por outros homens
e sequer um nome fica como erva.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Às Tangerinas

Manuel Bandeira dedicava a sua grande ternura
aos passarinhos mortos
e às meninas bonitas que se tornaram feias mulheres.
Eu oferto a minha ternura às tangerinas.
Este fruto de sabor mais do que ácido: ardente.
Esta fresca acidez feita para um dia de sol
mas que madura no inverno.
Basta dizer tangerinas que sinto uma luz vibrante
a me sair pela garganta.
Fruto que mais desejo quanto mais sede tenho
e o dia é reverberação da luz.
A minha grande ternura às tangerinas
porque me lembram um coração
há pouco ferido e há pouco consagrado
em tardes ungidas de amor.
A minha grande ternura às tangerinas
e a este trêmulo coração que entra na noite
e ainda palpita.

sábado, 15 de outubro de 2011

Para Ana, Que Me Pediu Um Poema

I.


Ana me pede um poema
que já não sei escrever:
um poema que seja Ana
e que traga um canto que Ana
nunca ouviu.


Sem saber o início, olho uma foto de Ana
e traço o inventário
que sequer é o inventário da beleza de Ana:
Ana tem os olhos castanhos.
Ana tem os cabelos também castanhos
e os cabelos castanhos de Ana
são cortados à altura dos ombros, à moda de Anna Karina.
Ana traz sempre os ombros desnudos.
Ana traz sempre os ombros desnudos vermelhos de sol.
Ana adora usar vestidos.
Ana passa batom antes de sair de casa.
Ana tem as mãos pequenas.
Ana tem os pés ainda mais pequenos.


E aqui paro, a pensar
em Ana e nos pequeninos pés de Ana.
Aqui paro para adivinhar
que Ana está descalça
e continuo a adivinhar o poema
que possa existir e que possa levar o nome de Ana:
Ana está descalça
e os pés de Ana e os movimentos claros e fluídos de Ana
são pequenas açucenas
dispersas na nascente de um rio
e que seguem - docemente, molemente -
para longe da nascente deste rio.


E aqui paro, pois já não há no retrato de Ana
nada mais que eu possa retratar.
Aqui paro e aqui passo
a falar do único dia que teria visto Ana
pois a verdade é que nunca vi Ana
e na parede do meu quarto há gravuras holandesas:
Vi Ana numa manhã de chuva e ela não parecia triste
e o seu guarda-chuva amarelo, aberto como um girassol,
deveria ser o modelo para todos os girassóis
e depois vi Ana na tarde de sol e ela era um trigal,
mas um trigal inquieto, um trigal ardente, um trigal em chamas,
um trigal depois queimado pelo orvalho e pelo luar,
um trigal de uma umidade trespassada pela sede,
um trigal cansado de ser trigal,
um trigal e a espera nervosa de um tigre
que sente fome de carne e que reluz
- metade na penumbra azul, metade na penumbra brônzea -
como uma silhueta de fêmea
e por isso os caçadores que voltam das planícies
retornam todos enlouquecidos e todos se entorpecem
como se não quisessem existir apenas porque
tudo o que fere é a vontade de existir.


E aqui paro pois o dia em que vi-mas-não-vi Ana
terminou e não sei como Ana é
em todos os outros dias.
Aqui paro e passo a dizer o que Ana é
ao dizer aquilo que Ana não é
e tiro imagens de um sonho
embora nunca lembre os meus sonhos:
Ana não é a menina da porta ao lado.
Ana não é a Anna Flor do poema que eu lia quando amava outra Ana.
Ana não é algo que termina.
Ana não é a imaterial luz que empalidece.
Ana não é um animal que foge do êxtase.
Ana não é um piano que naufraga.
Ana não é um poema que se escreva
sem que se saiba o que são açucenas,
sem sem que se saiba o que são girassóis,
sem que se saiba o que são trigais,
sem que se saiba o que são meninas da porta ao lado,
sem que se saiba quem foi Anna Flor,
sem que se saiba das coisas que terminam,
sem que se saiba o que são animais em êxtase.


II.



Fui até Ana após ter escrito um poema
que não era Ana - um poema que era
apenas o que eu sonhava em Ana.
Assim cantei os seus olhos castanhos
mas não cantei como Ana revela
os seus olhos castanhos após o beijo,
estes olhos olhos que vem à superfície
como vem à superfície uma rosa
nascida e desabrochada na fundura
de um rio que leva o coração de Ana
até a superfície da pele, um rio
que adormece este coração-vertigem de Ana
sob o peso das pálpebras e cílios
que apenas suportam o peso da luz,
que apenas bebem o silêncio da penumbra
do erguer do sol e do cair do sol.

Assim cantei os olhos de Ana
mas os olhos de Ana são um poema que se esgota
e por isso cantei além dos olhos
e o que cantei foi o que eu buscava em Ana:
uma elegia que era uma cicatriz
nascida em mim antes de Ana
e um hino que era a exaltação
de uma terra nunca vista
e tão plenamente fértil que tudo germinava:
Ana e os seus pés que eram açucenas.
Ana e o seu guarda-chuva que era um girassol.
Ana que não era um piano a naufragar.
Ana que era a luz trêmula e dura
das aquarelas que perduram...
Mas agora que estive com Ana
e agora que acordei junto de Ana
digo: Ana é um alegre madrigal
e por isso a alegria de Ana é um festival
de flores numa praça ao entardecer
após a chuva, quando temos os corpos ainda quentes
por termos nos protegido da chuva,
uma praça que cheira a terra e árvores molhadas
e então Ana aponta flores brancas
e as nomeia como se nomeasse a própria alegria:
são margaridas - eis o júbilo de Ana,
eis a luz trêmula e dura que é Ana
a nomear as coisas, eis os mais lindos girassóis
que ainda não vi, eis um piano
que não naufraga embora eu saiba
que o silêncio de Ana é o diminuto murmúrio
de algo que se afoga em meu sangue.

E tanto cantei Ana
que até cantei que Ana era um trigal
mas agora que estive com Ana e agora
que despi Ana digo que a nudez de Ana
ondula como um trigal às vezes ondula
e por isso digo e me corrijo:
Ana é um trigal, mas um trigal não é Ana.
Um trigal arde mais quando arde o sol
e bebe a umidade que vem do luar
e lança aos ventos uma cantiga e um perfume
que pertencem ao luar e ao trigal
sem que sejam o luar e o trigal.
Já Ana pode queimar (pois eu a vi queimar)
ainda quando o dia é gris
e Ana tem uma voz claramente sua - a voz de Ana! -
e um perfume só seu atravessado pelo dulçor
mas que não é apenas dulçor.
Um perfume que na sua hora mais plácida
pode ser uma plácida cantiga de amor
que toda menina aprende quando ninada
por uma mãe triste ou por um avô de violão triste.
Um perfume que na sua hora mais agreste
pode ser a essência de uma romã bravia
ou de um animal ferido pela primeira vez
e que foge mata adentro, sangrando,
e das funduras da mata vem apenas o uivo
desta carne jovem, desta carne já acesa,
desta carne que reconhece como possível
apenas o mundo em que flua o seu sangue,
apenas o mundo em que caiba o seu gozo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Último Poema Para Carolina, Que Escrevia Versos Durante as Aulas de Matemática

Talvez estejamos velhos, eu e tu,
para os poemas escritos
durante as aulas de matemática,
entre os mistérios das equações.
Há o sol lá fora. O sol livre
e no entanto o sol que pesa
e a cada ombro humano que esmorece
outro o sucede, mais forte, mas não
forte o bastante, embora eu o saiba:
ainda não é esta a tua fraqueza
e talvez o teu cansaço seja apenas
o distante solfejo de asas negras
que por vezes rasgam a manhã
quando se deseja ainda ter o mundo
como se tem uma idéia plena
e é isto o que adoro em ti.


Talvez estejamos velhos, Carolina,
mas são velhices diferentes
porque diferentes são as fúrias
consteladas em mim e em ti
e diferentes são as palavras
que nascem do vazio
que um dia fomos: as minhas palavras
são as tardias poeiras de estrelas mortas
e as tuas palavras, menina,
as tuas palavras ainda são líquidas e ardentes
como a lava no núcleo de um planeta
onde haverá árvores
e frutos nestas árvores
e corpos livres a desejarem
e depois a desperdiçarem a liberdade
e depois a desperdiçarem o desejo
e depois a desperdiçarem
o tempo que se tornou o abismo
que começou em ti, Carol,
que começou em ti no instante
em que começou a tua coleção de mortos
(e de todos os mortos sabes ainda
os nomes e o modo como riam
e o modo como a brisa primaveril
lhes despenteava os cabelos
quando o próprio mundo era o suave desalinho
de um rio sem fluxo definido
embora nada mais haja para este rio
além de se somar ao oceano sem fim
e nada mais há para ti, rapariga,
além de alinhar reinos
pelo simples fato de ser césar
quem sonha pela primeira vez).


Talvez estejamos velhos, criança,
mas isto não se compara:
o que sei e o que julgo saber
não vale mais do que uma pálida elegia.
O que tu não sabes,
o que tu docemente desconheces
é exatamente aquilo
que tu evocas pelo nome
(o mundo, o mistério, o segredo
do fogo e o segredo para que os homens
sejam livres e bons) e isto
vale todos os épicos já escritos
e todos os épicos que nunca escreverei
pois o que te consagro,
o que tristemente te consagro
são poemas gastos
pelo que veio antes de ti
pois tanto, ah, tanto veio antes de ti
que há muito não canto um dia
sem noite que o preceda
e também por isso eu quero
cantar a ti, Carolina, cantar
o que torna o verde dos teus olhos
o verde dos teus olhos, cantar
um hino que seja o teu corpo
e também o sol que tento reter:
este sol em teus cabelos
este sol em teus seios
este sol em teus cheiros de piscina
este sol em tuas entranhas
este sol que encontra o teu semblante
quando findam as aulas de matemática
e ainda é meio-dia.

domingo, 2 de outubro de 2011

Cadernos de Viagem: Ítaca (alterado)

Quando volto a Ítaca
tudo continua,
tudo é nunca mais.

Ítaca: a praia
onde finda a voz
do que fora o exílio.

Ítaca: o sonho
que germina o sangue
e o torna maior.

Ítaca: o amor
e um segredo vil
em mim e Penélope.

Ítaca: a casa
feita com o pó
dos ossos paternos.

Ítaca: o corpo
do filho não nascido
deitado na relva.

Ítaca: os dias
de velhice, sono
e insone memória.

Ítaca: o fim.
Para que o regresso
se tudo é partida?

Oh, Musa, reconta-me,
algo sobre mim
e algo sobre heróis.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Cadernos de Viagem: Nunca Mais

A cidade era cercada, do lado leste, por uma dessas gigantescas indústrias que escavam o solo sem qualquer motivo aparente. As silhuetas das imensas chaminés eram pilares de sombras que recortavam o cada vez mais noturno azul do céu, enquanto o vapor emanado se enrodilhava na caída luz que as montanhas do oeste tratavam de filtrar, fazendo oblíqua a última claridade do dia. Na auto-estrada que, ao cruzar a cidade, tornava-se a própria main street, os carros seguiam impulsionados por uma força autônoma a qualquer comando. Um lugar tão neutro e opaco que, poucos quilômetros adiante, não perdurava mais qualquer indício de sua existência. Agora o breu noturno caíra sobre o deserto. A sujeira emanada pela indústria já se diluíra na imensidão sem nuvens. Foi então que percebi um céu estrelado como nunca antes. Um céu de constelações tão baixas e cintilantes que, naquele momento, eu soube que estava diante do que poderiam ser as neves de outrora: um abismal emaranhado de astros de toda a sorte; estrelas cadentes que riscavam um quadrante celeste e desapareciam; e o luar líquido, enorme, central, não importava quanto o carro avançasse. Eram os últimos dias daquela viagem que eu havia esperado como quem espera uma canção que, ainda no primeiro momento em que a melodia trazida pelo vento sussurra distante e quase inaudível, é plena de umaalegria certa nos sons que se avizinham. O coração nunca deixa de estar ferido.

E o regresso se torna mais definitivo quanto mais límpida é a consciência do lugar para onde se regressa. Em geral, esta consciência do retorno e a consciência de estar em determinado lugar não são diferentes da própria consciência da morte. Em outras palavras: sabemos e não sabemos que iremos ter fim, embora existam dias nos quais esta consciência do fim venha com muito mais clareza do que na maioria dos dias. Então eu acabo?, abisma-se o coração dentro do próprio peito. Então os meus olhos são pérolas que nunca espelham o infinito?, percebem os olhos subitamente nublados por uma sujeira que é a impossível soma dos dias.

Igualmente, seja durante as cansativas jornadas de retorno, seja durante as idênticas tardes ou noites em que estamos em casa, sabemos e não sabemos que retornamos, sabemos e não sabemos que estamos em casa, sabemos e não sabemos que nos despedimos. E então, como que chicoteada pela clarividência de qualquer coisa que está em cada um e é maior do que cada um, sabemos que retornamos, e sabemos que estamos onde nascemos, e sabemos que tudo é nunca mais, e eis que a consciência é rasgada ou pela memória do quarto dos primeiros anos, ou pela antecipação da queda da casa na qual ainda dormimos, ou pelo abismal confronto com qualquer coisa que está aqui apenas para não estar mais aqui. Sempre e sempre.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Cadernos de Viagem: Tudo Continua

Não pertenço a estas planícies
ou pântanos, ou montanhas
de uma terra que para mim
é o norte não apenas físico
mas também o norte de um espírito
que eu quis tornar meu: uma carícia
tida em sonho e que ainda continua
pois tudo continua. Os fantasmas continuam
ainda que ninguém evoque os seus nomes
e também os sonhos continuam
ainda quando evaporados e ainda
quando o ar da tarde parece certo
e sem dores e assim sem dores
o amor continua
ainda quando apenas um solitário riacho
flui por um coração que apenas se desbrava
durante aventuras em novos e estranhos mares;
novos e estranhos e perdidos mares que continuam
qual o passado continua
e com o passado todas as sombras continuam;
todas as sombras que avançam,
todas as sombras que se tornam transparência
de pálido júbilo ou pálida morte - vazio
róseo ou dourado ou carmesim
que escava o céu naquela hora
em que nada existe para que tudo exista.


                                                                   escrito em Dallas, quarto de hotel.

domingo, 24 de julho de 2011

Julho

No céu, nenhuma sombra. É o sol
que volta a ser maciço.
Cintila e fere os olhos, embotando-os
e embotando a imagem
que para si cada homem construiu.


As árvores já mortas
e ipês de cores já plenas pontuam
uma única avenida.
Ainda se evapora o último orvalho
e o calor é silêncio.


Trabalho que não cessa, caminhões
que toldam o ar de negro,
o almoço gorduroso feito às pressas
e pesado o torpor.
Não há corpo que não queira dormir.


Raivosa e crua luz meridiana
e o seu coração sujo.
O céu é torvelinho. Lancina a tarde.
Um vento carmesim
torna ásperos suor e epiderme.


Se os dias são poemas
são poemas que integram alfarrábios
que toda a gente leu
sem saber que leu – elegia vinda
dos pianos da infância.


E se os dias são poemas, os versos
ardem como esta luz
trêmula e sôfrega que corta o ar
e que ateia fogo às asas dos pássaros.
Cinzas que toda a gente
respira como se não respirasse.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Insônia

Deixa o frio de ser branco
quando venta e é noite:
rumor de samambaias.


Mais longe, o luar
e o seu véu cristalino
no céu adormecido.


Sou um homem doente
e tenho olhos que doem:
tudo perde a irmandade.


Um corpo não é rio.
A morte não é mar.
Na aurora, um insone


não distingue a penumbra
das mãos a clarear.
Aurora naufragada


e seus bichos sonâmbulos:
meu sangue que goteja
até que haja manhã.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Domingo, a partir de Fernando Pessoa

Ninguém conhece que alma tem,
mas a alma aparece e dói
como algo que desperta e cai
em sua álgida nudez.
Os céus opacos então ferem
por serem opacos, e as noites
então vazias escavam
abismos por serem vazias.
Há dias de brumas e mágoas
e todas as mágoas se emanam
da dor deixada aos nevoeiros
ainda antes dos nevoeiros.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Maio Que Termina (Canção)

Eis aqui uma elegia:
é maio que termina
qual a magra menina
que ardia e caía.


Na noite que cicia,
estrela cristalina:
terá a magra menina
um peito que agonia?


Se o agora é cinza fria
é que a magra menina
findou a sua sina:
arder mais do que o dia.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Para A Menina Que Mentiu o Seu Nome e Disse se Chamar Francisca

     Francisca, me dá a tua boca e o teu ventre.
     Francisca, me dá a tua madrugada de raízes túrgidas.
     Francisca, me dá um céu matinal e os teus cabelos na penumbra azul.
     Francisca tão igual a do poema de Manuel Bandeira que a ele direi: "Que bonita era Francisca.  Tão bonita que, ainda quando nada me dava, eu nunca deixava de dizer: "Que bonita era Francisca! Que bonito era o nome de Francisca!".

     A Francisca tanto eu pedi
     apenas por se chamar Francisca.
     Mas a ti, menina, a ti eu pedi tão pouco
     e tão pouco pedi apenas para dizer ao amigo morto:
     "Eu vi Francisca indo embora.
     Eu vi as auroras solitárias e com chuvas que principiaram bonitas."

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Para Thaís Emília, Que Ama as Mexericas

                                  Na aurora faz frio
                                                                                                e o abraço de um corpo seria uma vida.
                                                                                                        Cesare Pavese, "O Jantar Triste"


Será um esplendor a aurora
em que Thaís Emília voltar a queimar.
O céu ainda estará gelado. As estrelas
sumindo no arrebol serão cristais de neve
desmanchando-se sobre a cidade
em brisas de neblina e orvalho.
E Thaís Emília, quando o seu corpo
for colhido pelo outro corpo contido
nessa fria aurora, lembrar-se-á
das mexericas que tanto ama
e que tanto a intrigam. Lembrar-se-á
da improvável, da cítrica doçura
propícia ao calor, mas que longe do calor
amadurece – o que é uma alegria
e um mistério; a hora branca
manchada por aromas que da terra
ascendem, que na terra fermentam,
que na terra bebem o sol
mais distante, mais ínfimo.
Será um esplendor a aurora
que desvelar o corpo de Thaís Emília.
A boca e o sexo como nascentes
vermelhas e os seios róseos iguais
às tangerinas do frio, às tangerinas
de cítrica doçura, às tangerinas
cujo sabor e exaltação pedem
o sol e a sua língua de fogo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Para Carolina, Que Escreveu Um Poema Durante a Aula de Matemática (modificado)



Também para isso servem
as aulas de matemática:
tantos números, tanto sono,
tantas palavras presas
aos olhos que adormecem – erva
que cresce porque é erva.


E erva não é apenas
um cadáver ou a relva
pisada durante as tardes
e respirada nas manhãs:
suor de orvalho evaporado.


Erva também é frêmito
e o que mais arqueja
sob a pele: garganta
que é um rio aprisionado,
coração que sufoca
porque deixa de ser sangue
para ser algo estragado.
Algo que ao sol levamos;
ao sol, aos ventos, ao
precário piano que é
a juventude. 


Cabelos úmidos de orvalho,
olhos gotejantes de sono
a manhã fria e o frêmito
que é levado ao sol, aos ventos
e ao mole cheiro dos gizes.
Raiva que pode ser ternura
pois também para isso servem
as aulas de matemática:
para que uma funda palavra
risque a manhã e depois,
percebida oca, afunde
e alcance uma fundura tal
que seja possível voltar para casa.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Poema: Estar Vadio

Quarteirões inteiros de casas derruídas,
o vento frio e o céu encrespado de cinza –
ainda que outono seja hora cristalina
existe a antecipação do inverno. É o que basta
para meninas de cachecóis ganharem as ruas
e atrás delas um rastro púrpura e azul.


Ainda as tangerinas, ainda as noites estreladas.
Sei que, ao fim das tardes, o vento gelado
fará soçobrar este céu grisalho. Sei que a luz
será como um hálito branco que arderá
e o branco passará ao dourado e o dourado
ao vermelho e por fim à noite quieta.


Sei de tudo isso porque aqui estive quando
tudo isso aconteceu pela primeira vez: a descoberta
do instante ora cristalino, ora sombrio, e as flores
nas feiras e as meninas com cachecóis
como águas vivas sulcando a face das águas,
como pétalas primaveris esquecidas pela chuva.


Estar vadio é estar como um cão. Estar vadio
é não ter casa. Estar vadio é pular os muros,
acreditar que o vinho quente acabará com a febre,
por isso estar bêbado e ao abrir os olhos
sentir o sol como uma cicatriz de fogo
e saber-se leproso e solitário ao luar.


Estar vadio é algo que um homem abandona
enquanto caem os prédios, enquanto tesouros
vão ao lixo, enquanto as meninas perdem
a brancura de neve intocada e o rubor
de incendiarem pela primeira vez.
Estar vadio é algo que não finda com o vinho


mas com o fim da febre. Os dias são iguais
pois igual é tudo o que se perde: jogos
de dados durante a tarde, bebedeiras,
zoeiras de guitarras ao entardecer.
Sou um homem são porque me tornei
um homem doente e um homem doente


porque longe da febre. Os dias são iguais,
os quarteirões são de esquinas calcinadas
e o vento que antecipa o inverno
é uma canção e uma mágoa – lira que
teve a minha voz antes de ser vazia.
Ao final do dia voltarei para casa.