terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Tribunal: dois poemas iniciais.

DOUTOR PAULO ABRANCHES




2011 não foi um bom ano para o Doutor Paulo Abranches.
Ainda em Março, a sua casa
foi invadida por homens armados.
Durante o seu depoimento, enquanto vítima,
o Doutor Abranches foi mil vezes mais eloquente e preciso
do que enquanto advogado.
Agosto veio, e um estio terrível
passou a lhe sufocar durante o sono
e ele então acordava e com os olhos
mal habituados às trevas mirava
as formas cambiantes que eram o corpo de sua velha mulher
e os móveis e as roupas ao redor, fantasmagóricos.
Esperava então pelo murmúrio, o calmo sussurro
da chuva fina que começa alta noite
e invade a manhã - brisa gotejante
a cair dos beirais dos telhados e do alto das árvores.
Em Outubro, às primeiras tempestades,
foi novamente vitimado por homens armados:
acertaram-no o intestino, mas o que o matou
foi a infecção que atacou os pulmões.
Naquelas noites, igual em Agosto,
acordava sufocado, com os olhos
que agora eram flores devolvidas pelas sombras
e escutava a fina chuva que caía lá fora
e sabia que já não apenas o desejo
havia o abandonado (tanta coisa
perde um homem antes de perder tudo).
No dia de seu funeral, como é comum
em nossa pequena cidade, um carro com alto-falantes
percorreu lento as ruas, reverberando um clarim fúnebre
e isto era, apenas isto era o dobrar dos sinos
por aqueles levados no barco de Caronte.
Após ecoar o áspero clarim, uma voz também áspera
informava que o Doutor Paulo Abranches estava morto
e que deixava uma mulher outrora bela.


DOUTOR JUSTINO


O Doutor Justino - melhor amigo do Doutor Abranches -
ficou de tal modo ferido pelo acontecido
que no dia seguinte à ida de seu companheiro às raízes
permitiu que um acusado a quem fora incubida a defesa
fosse condenado sem a observância do processo legal.
Na noite seguinte, a insônia que recaiu
sobre o Doutor Justino foi por ele próprio
reconhecida como vã e, no entanto, o que tanto pungia
o seu peito magoado?
Era o amigo morto
ou o ladrão mal defendido?
Levantou-se com a esperança de que um copo de conhaque
devolvesse o sono perdido.
Entre um gole e outro evocava
os ladrões crucificados ao lado de Cristo.
O Doutor Justino bem sabia, amargo,
que a história dos dias é a história
de homens que morrem por outros homens
e sequer um nome fica como erva.

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