sábado, 15 de outubro de 2011

Para Ana, Que Me Pediu Um Poema

I.


Ana me pede um poema
que já não sei escrever:
um poema que seja Ana
e que traga um canto que Ana
nunca ouviu.


Sem saber o início, olho uma foto de Ana
e traço o inventário
que sequer é o inventário da beleza de Ana:
Ana tem os olhos castanhos.
Ana tem os cabelos também castanhos
e os cabelos castanhos de Ana
são cortados à altura dos ombros, à moda de Anna Karina.
Ana traz sempre os ombros desnudos.
Ana traz sempre os ombros desnudos vermelhos de sol.
Ana adora usar vestidos.
Ana passa batom antes de sair de casa.
Ana tem as mãos pequenas.
Ana tem os pés ainda mais pequenos.


E aqui paro, a pensar
em Ana e nos pequeninos pés de Ana.
Aqui paro para adivinhar
que Ana está descalça
e continuo a adivinhar o poema
que possa existir e que possa levar o nome de Ana:
Ana está descalça
e os pés de Ana e os movimentos claros e fluídos de Ana
são pequenas açucenas
dispersas na nascente de um rio
e que seguem - docemente, molemente -
para longe da nascente deste rio.


E aqui paro, pois já não há no retrato de Ana
nada mais que eu possa retratar.
Aqui paro e aqui passo
a falar do único dia que teria visto Ana
pois a verdade é que nunca vi Ana
e na parede do meu quarto há gravuras holandesas:
Vi Ana numa manhã de chuva e ela não parecia triste
e o seu guarda-chuva amarelo, aberto como um girassol,
deveria ser o modelo para todos os girassóis
e depois vi Ana na tarde de sol e ela era um trigal,
mas um trigal inquieto, um trigal ardente, um trigal em chamas,
um trigal depois queimado pelo orvalho e pelo luar,
um trigal de uma umidade trespassada pela sede,
um trigal cansado de ser trigal,
um trigal e a espera nervosa de um tigre
que sente fome de carne e que reluz
- metade na penumbra azul, metade na penumbra brônzea -
como uma silhueta de fêmea
e por isso os caçadores que voltam das planícies
retornam todos enlouquecidos e todos se entorpecem
como se não quisessem existir apenas porque
tudo o que fere é a vontade de existir.


E aqui paro pois o dia em que vi-mas-não-vi Ana
terminou e não sei como Ana é
em todos os outros dias.
Aqui paro e passo a dizer o que Ana é
ao dizer aquilo que Ana não é
e tiro imagens de um sonho
embora nunca lembre os meus sonhos:
Ana não é a menina da porta ao lado.
Ana não é a Anna Flor do poema que eu lia quando amava outra Ana.
Ana não é algo que termina.
Ana não é a imaterial luz que empalidece.
Ana não é um animal que foge do êxtase.
Ana não é um piano que naufraga.
Ana não é um poema que se escreva
sem que se saiba o que são açucenas,
sem sem que se saiba o que são girassóis,
sem que se saiba o que são trigais,
sem que se saiba o que são meninas da porta ao lado,
sem que se saiba quem foi Anna Flor,
sem que se saiba das coisas que terminam,
sem que se saiba o que são animais em êxtase.


II.



Fui até Ana após ter escrito um poema
que não era Ana - um poema que era
apenas o que eu sonhava em Ana.
Assim cantei os seus olhos castanhos
mas não cantei como Ana revela
os seus olhos castanhos após o beijo,
estes olhos olhos que vem à superfície
como vem à superfície uma rosa
nascida e desabrochada na fundura
de um rio que leva o coração de Ana
até a superfície da pele, um rio
que adormece este coração-vertigem de Ana
sob o peso das pálpebras e cílios
que apenas suportam o peso da luz,
que apenas bebem o silêncio da penumbra
do erguer do sol e do cair do sol.

Assim cantei os olhos de Ana
mas os olhos de Ana são um poema que se esgota
e por isso cantei além dos olhos
e o que cantei foi o que eu buscava em Ana:
uma elegia que era uma cicatriz
nascida em mim antes de Ana
e um hino que era a exaltação
de uma terra nunca vista
e tão plenamente fértil que tudo germinava:
Ana e os seus pés que eram açucenas.
Ana e o seu guarda-chuva que era um girassol.
Ana que não era um piano a naufragar.
Ana que era a luz trêmula e dura
das aquarelas que perduram...
Mas agora que estive com Ana
e agora que acordei junto de Ana
digo: Ana é um alegre madrigal
e por isso a alegria de Ana é um festival
de flores numa praça ao entardecer
após a chuva, quando temos os corpos ainda quentes
por termos nos protegido da chuva,
uma praça que cheira a terra e árvores molhadas
e então Ana aponta flores brancas
e as nomeia como se nomeasse a própria alegria:
são margaridas - eis o júbilo de Ana,
eis a luz trêmula e dura que é Ana
a nomear as coisas, eis os mais lindos girassóis
que ainda não vi, eis um piano
que não naufraga embora eu saiba
que o silêncio de Ana é o diminuto murmúrio
de algo que se afoga em meu sangue.

E tanto cantei Ana
que até cantei que Ana era um trigal
mas agora que estive com Ana e agora
que despi Ana digo que a nudez de Ana
ondula como um trigal às vezes ondula
e por isso digo e me corrijo:
Ana é um trigal, mas um trigal não é Ana.
Um trigal arde mais quando arde o sol
e bebe a umidade que vem do luar
e lança aos ventos uma cantiga e um perfume
que pertencem ao luar e ao trigal
sem que sejam o luar e o trigal.
Já Ana pode queimar (pois eu a vi queimar)
ainda quando o dia é gris
e Ana tem uma voz claramente sua - a voz de Ana! -
e um perfume só seu atravessado pelo dulçor
mas que não é apenas dulçor.
Um perfume que na sua hora mais plácida
pode ser uma plácida cantiga de amor
que toda menina aprende quando ninada
por uma mãe triste ou por um avô de violão triste.
Um perfume que na sua hora mais agreste
pode ser a essência de uma romã bravia
ou de um animal ferido pela primeira vez
e que foge mata adentro, sangrando,
e das funduras da mata vem apenas o uivo
desta carne jovem, desta carne já acesa,
desta carne que reconhece como possível
apenas o mundo em que flua o seu sangue,
apenas o mundo em que caiba o seu gozo.

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