domingo, 22 de março de 2009

Poema

A tarde começou seca, inóspita.
O céu, em tons de ardósia, era um bloco
de gelo sujo que lá na lonjura
em vapores vermelhos esvaía-se;
e os ventos, ao trazerem tais vapores
às ruas, sobre as ruas espalharam
essências de cinza, sangue e motores.

Depois, antes ainda do crepúsculo,
este céu foi cruzado por relâmpagos:
baixas nuvens romperam sobre as ruas,
ecos tonitruantes, luz corrupta
e por fim caiu a chuva, mas não
um temporal – apenas uma chuva
de pingos grossos, gelados, a qual
rolou rios de lama sobre as sarjetas.
Nos postes tremeluziram as luzes.
O que era opaco e branco conseguiu
tons violáceos, e eu, inerte sob
uma marquise, a olhar a sujeira,
pensei na miúda que antes da chuva
por mim passara com seus olhos claros
e a pele clara e um fulgor igual
ao das magras musas feitas de luz
que se esbateram e depois sumiram.
Não recordo os seus rostos mas recordo
que há poucos anos ainda viviam
e procuro o que mudou desde então.
Igual a cidade, igual a carne
aos anos em que a morte, de tão pálida,
não passava de pálido terror.

O que talvez mudou, pensei comigo,
é que para as raízes perdi corpo
mais do que amado: santo – e santo é
apenas por ter sido maculado
pela terra que depois o roeu.
E outro corpo, este luz e pujança,
amei apenas para descobrir
que ainda durante a febre da carne
a carne pode fugir das mãos nuas.

O resto são dias que se repetem
como se outros dias não existissem:
tardes chuvosas e horas lamacentas
findam o calor; dias cristalinos
de maio a julho, até que em agosto
sopram mais fortes os ventos do estio
e o que renasce soma-se aos augúrios
de que tudo voltará a morrer –
céu branco substitui o arrebol
e as brumas púrpuras do entardecer
coagulam-se e mudam-se na noite
e em astros de brilho gordo, argênteo.
Como partir? Como fechar os olhos
e do abrigo das estrelas fugir?
Como abandonar os dias iguais
se iguais os dias alegres e igual
o medo de a palavra esperdiçar
(a palavra como sentido nunca
achado; como sentimento nunca
sentido; a palavra como afeto
mudo; a palavra que fora daqui
será mais do que oca: inexistente)?

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