domingo, 15 de março de 2009

Poema

POUCO A POUCO, OS DIAS DE CALOR

Pouco a pouco, os dias de calor
mudam-se em horas de irisada luz
enquanto aqui, neste quarto de estudos,
a morta infância parece afogada
em águas claras e lisas– as quais
não escavam os seixos mais profundos.

Quereria eu, em bonito dia,
da carne caduca alcançar a fuga
para a carne pueril visitar.
Com esse corpo, à praça central
iria – perto das flores do estio
e dos mascates da falência próximos –
e lá escapar do exílio que à mente
e ao coração isolou; regressar
às tardes mais do que suaves: fáceis,
e às moças mais do que fáceis: entregues
à febre que por esplendor se toma.
Esplendor o qual, como o orvalho queima
a frágil relva, machuca os seus rostos
na hora que a luz parece perene
embora morra: crepúsculo claro
e veloz – crepúsculo feito sonho
no qual a dor não é dor, e o cair
não é cair, e o tempo não é tempo
(assim inscientes vamos ao Hades,
assim cegos pela primeira vez
a estiolada luz nos vaza os olhos,
assim ignorantes esquecemos
as palavras tolas e os deuses tolos).

Nada a fazer contra esse entardecer.
Embora branda, a tarde lá fora
é a tarde de agora, pois a noite
que virá depois, mesmo constelada,
é a profunda noite da velhice.
E a praça central, embora concreta,
não é a praça central: é apenas
um lugar triste, algo como um túmulo
ou um nome de morto que também
é o nome de um vizinho – um homem
calado mas gentil, familiar
mas estrangeiro: apenas a sombra,
a estranha sombra do que não existe.

Um comentário:

  1. Nao sabia dessa sua face poetica. Ha muito tempo passei a acreditar que nao estou a altura de poesias...sabe, certas coisas nao sao para todo mundo. Mas gostei daqui.

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