domingo, 1 de fevereiro de 2009

Espólio do antigo computador - Conto: Quando Reencontrei Rubi

Reencontrei Rubi após cinco anos. Foi em uma sexta-feira, ao entardecer. Era véspera de feriado. Eu acabara de sair do trabalho e não queria voltar para casa. Preferi uma solitária sessão de cinema, havia pouca gente, mas lá encontrei Rubi. Os seus olhos castanhos, que no passado eram como a úmida sombra que se aloja no fundo de um poço, pareciam diferentes. Exceção feita a essa mudança, ela não me parecia mais velha ou mais cansada. Ao observar os seus gestos, lembrei-me de que às vezes ela dizia me amar e às vezes dizia ter vontade de morrer. Por isso eu havia fugido, mas nunca soubera se fora por medo de vir a amá-la ou se por medo de nunca vir a amá-la. Enfim, eu havia fugido e agora a reencontrava – eis a síntese do que deve ser dito.

Dentro do cinema, pairava um cheiro gelado, e talvez por isso eu a tenha beijado: para impedir que a umidade gelada entrasse dentro de mim. Rubi, como nas outras vezes em que eu a beijara, não usava batom. Quando inclinei o corpo na sua direção, ela apenas deixou a cabeça cair, sem peso, na direção de meu ombro. Parecia muito calma.

O apartamento em que agora Rubi vivia era dos mais simples: apenas cozinha, sala, banheiro e quarto, todos unidos por corredores estreitos, curtos, iluminados por pequenas lâmpadas que irradiavam um esfumado brilho vermelho. Um piso gelado recobria todos os cômodos, e, à medida que a luz violácea e cambiante sumia por entre as nuvens carregadas de chuva, eu percebia a umidade que se evolava das paredes e do chão. Havia também uma sacada; esta ficava diante de uma rua suburbana, e nas casas todas as famílias pareciam se preparar para o jantar. No céu, a escassa luz natural, ao misturar-se com a claridade amarela emanada pelos postes, tornava o entardecer pardacento e embotado. Garoava. Vindos de longe, chegavam amortecidos rumores das vozes que conversavam ao redor das mesas.

Sentei-me na cama e olhei para os pertences que Rubi guardava sobre a penteadeira: perfumes, pentes, talcos. Sobre uma secretaria, havia alguns livros e, talvez reminiscência da infância, uma girafa de pelúcia. Estremeci ao perceber a inutilidade de todos esses objetos. Era como estar na sala mortuária de um necrotério, observar os cadáveres sobre as macas, e não saber o que é mais horrível: a certeza de que tais corpos estão fora da vida, ou o irracional medo de que algum dos mortos erga um braço ou talvez irrompa em uma gargalhada. À medida que os minutos passavam, maior era a inércia: nada destroçava o silêncio, tudo permanecia em seu lugar, ora à espreita, ora em vigília.

Quando Rubi sentou-se ao meu lado, observei que o castanho dos seus olhos havia sido recoberto por uma membrana carmesim, de modo que agora assemelhavam-se a terra queimada pelo calor, terra dura e seca, que não pode frutificar, onde nascem apenas raízes mortas, e o som dos passos, quando se pisa uma terra tão árida, é um ruído seco e monótono. E o jeito de rir ainda se relevava perturbador. Rubi ria como se fosse uma garota de oito anos de idade, embora, para além da infância, houvesse um rancor sem remédio. Tenho idade bastante para morrer, já dizia Rubi antes de eu ter fugido pela primeira vez, como se tivesse a esperança de que alguém a salvasse. Mas Rubi nunca desejou ser salva, não durante o tempo em que estivemos juntos. Portanto, é irrelevante o que ela dizia. O que não me sairá da memória são os seus cheiros. Eu lhe beijava a boca sem batom – e às vezes era como beijar uma cicatriz – e, enquanto lhe despia, atentava para o modo como o seu corpo cheirava. Quando enfim a nudez se relevava, Rubi recendia a terra molhada, até o castanho dos seus olhos era povoado por nuvens de tempestade, como se o seu corpo e os seus olhos fossem uma região distante e selvagem, cuja extrema aridez conhece a chuva apenas uma ou duas vez por ano.

Como naquelas noites antes da primeira fuga, Rubi adormeceu com o corpo junto ao meu. Passados alguns minutos – com os músculos frouxos e com a consicência entorpecida por respirar o denso ar que se desprendia da mulher ao meu lado – também adormeci. No primeiro sonho que tive, eu caminhava por uma planície e, apesar do silêncio ao redor, não conseguia me desvencilhar da idéia de que algo muito ruim e violento acabara de acontecer. Então brumas ascenderam à consciência e, quando as imagens recuperaram a limpidez, eu soube-me cinco anos mais jovem, como se eu houvesse regressado no tempo e revivesse antigas noites; quando, deitado na cama, não percebia Rubi perto de mim. Escutava barulhos na cozinha. Caminhava até lá. Rubi vestia apenas uma camiseta que lhe desenhava os seios miúdos. Estava descalça e, ajoelhada, revirava a gaveta dos remédios. Onde estão os calmantes? – perguntava assim que percebia a minha presença, a voz furiosa e pétrea, de modo que eu pensava: uma planície avermelhada e batida pelo sol é sempre um lugar selvagem e maldito. E talvez por isso – por não ter forças para lutar contra algo que pretendia ser um chamado da própria natureza – dava-lhe os remédios. Ela ria(e ao rir trazia sombras de infância para os olhos e para a tristeza) e dizia Eu o amo porque você não se cansa de cuidar de mim. A seguir, enquanto as palavras ainda reverberavam, engolia os comprimidos e voltava para a cama, enquanto eu, parado na cozinha, dizia a mim mesmo que Rubi não acreditava nas palavras ditas por ela. Pois, por mais dolorosas ou belas que sejam, as palavras são sombras, e Rubi apenas acredita no que assume uma existência tangível. E talvez seja essa a sua desgraça; pois a ânsia que julga ter pela vida nunca poderá ser apenas uma vontade, não, essa ânsia se mostrará verdadeira apenas a partir do momento que se traduzir em atos, e as realizações nunca estão à altura do pensamento pelo motivo do homem nunca estar à altura da idéia que cria de si próprio.

Às vezes – e no sonho foi isso o que ocorreu – após ficar imóvel na cozinha por alguns minutos, eu seguia Rubi até o quarto. Deitava-me ao seu lado e observava como a sua respiração pesada era amainada pelo efeitos dos calmantes, como o seu corpo perdia a temperatura e tornava-mais rijo, respirando, agora, a intervalos mais longos. Imaginava o instante em que, no futuro, o sangue deixaria de queimar; o momento em que a rigidez seria tanta que o diafragma não mais se expandiria e não mais se retrairia; e então não seria mais possível beijar a boca sem batom, de um rosa pálido, e observar como a carne ganhava cheiro de terra encharcada e como os olhos era nublados por nuvens de tempestade. Era um pensamento tão doloroso por logo assumir a forma de augúrio; e julgava-me o mais doente dos homens quando, terno, pensava hoje ela quis ser tristeza, hoje ela conseguiu ser tristeza, e eu a ajudei. No instante seguinte, adormecia e o sonho que me subia à consciência também foi um dos sonhos que tive quando, ao reencontrá-la após cinco anos, dormi com o corpo dela junto ao meu: eu acordava sobressaltado; os temporais haviam cessado e o quarto se afundava no cheiro do sangue de Rubi; até as paredes, tão brancas, pareciam tem sido pintadas de escarlate; e a predominância do vermelho era tanta que eu sentia uma pressão crescente sobre as têmporas e a própria visão escurecia; então desmaiava, engolfado por um oceano cor de sangue, pois assim será o dia em que Rubi decidir ser morte e horror.

Nenhum comentário:

Postar um comentário