segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poema

Não falávamos sobre o amor: falávamos
sobre o abandono, sobre apenas ter
a companhia do próprio coração –
tema surgido ao acaso, talvez
porque ontem o límpido céu de maio
cobriu-se de cinzas, e o vento frio
era açoite sobre a carne, açoite
além da carne, açoite talvez
sobre o espírito, sobre a cicatriz
de sangue, de mágoa, de solidão.

"Dói estar apenas na companhia
do próprio corpo, do próprio cansaço;
mas também dói buscar a comunhão
com o que está fora: seja uma tarde
de pura luz, seja moldar um outro
corpo ao nosso corpo." – afirmou Elisa,
e os olhos eram dois peixes negros, dois
peixes que sentem as sombras caírem
sobre as águas no limiar do inverno.

"Sim, tudo dói" – falei após o silêncio.
"Dói o amor, o desamor, dói ser carne,
dói o que temos e o que longe está
de nossas mãos nuas, de nossos corpos
talhados pelos ventos e colhidos
pela morte; como se apenas fôssemos
rubra luz entre duas transparências –
mas talvez para o fácil não nascemos,
talvez tenhamos nascido somente
para a alegria mais difícil, para
o gozo na escassez, para o que não
podemos ver e com fúria buscamos" –
respondi e me lembrei de outra tarde;
uma tarde após o amor, e eu na praça,
cansado de mim, à sombra das árvores,
bebia garapa, olhava os homens
e estes eram apenas um borrão,
apenas sombras cambiantes, vultos
batidos pela luz outonal –
gás que não se diluiu quando a chuva
veio; uma chuva breve e fina,
cujos pingos, trespassados pela luz,
poucas cabeças ungiram, lembrando
esparsa e clara poeira de estrelas.

E talvez o amor seja apenas isso –
pensei tanto naquela tarde como
diante da miúda cujos olhos
eram tristonhos como peixes náufragos:
a alegria do amor é fugitiva
por talvez se encontrar além dos corpos
que se entrelaçam, além da ternura
com que criam a chama que talvez
seja apenas o delírio de ser
iguais aos deuses que nunca existiram,
iguais aos eleitos que ungidos foram
por mentirosa poeira de estrelas
(pois até para o delírio é preciso
sorte: algo como se deparar
com um crepúsculo de sol e chuva
e ter o corpo envolvido por tanta
luz, tanta pureza, e então gozar
o breve milagre desse minuto
feito de brasas que, ao se acenderem,
nessa hora percebem que são finitas).

6 comentários:

  1. Um belíssimo poema, Daniel.Qualquer dia, se deixares, coloco no meu blogue...Beijo

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  2. Voltou ao grande espaço, à respiração larga, e logo em poesia. Conforme disse a Amélia, um belíssimo poema.

    P.S. Ainda estou vivo, ainda estamos vivos.

    Abraço

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  3. Nuno

    Sim, ainda estamos vivos; e, se ainda estamos vivos, é melhor nos comportarmos como vivos.

    Abraços

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  4. Oi Amélia

    Obrigado pelas palavras. E pode colocar o poema em seu blog quando quiser.

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  5. Gostei disso.

    (e, bem, você sabe o quanto isso significa!).

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  6. Sim, madame, eu sei o que isso significa.

    (e por isso fico especialmente feliz com o seu comentário)

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